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PT mira no movimento social e alivia para Alckmin

Em artigo publicado na Carta Capital, assinado por Lino Bocchini e intitulado “MPL mira em Haddad e alivia para Alckmin”, o Movimento Passe Livre é acusado de poupar o governador Geraldo Alckmin em seus protestos. Deixemos de lado as mentiras deslavadas do texto, como a de que o ato do dia 23 terminaria na prefeitura (terminaria na secretaria estadual, caso a repressão não impedisse sua continuidade), a de que o ato do dia 29 terminou na casa do prefeito (começou no MASP, terminou no Ibirapuera, com uma parada na casa de Haddad), ou a de que o governador é poupado das críticas veiculadas pelo movimento. Deixemos de lado também as omissões descaradas, como a de que, apesar da enorme distância e de ser um local pouco propício, o movimento já se dirigiu ao Palácio dos Bandeirantes em sua jornada anterior, ou a de que nenhum prefeito foi poupado pelo movimento (em 2011, Kassab não recebeu uma, mas duas visitas em sua residência, além de ser confrontado por apoiadores do movimento em diversas aparições públicas, e até mesmo quando em viagem ao exterior). Quer dizer, ainda que o texto seja uma deturpação cínica da realidade desta jornada de luta contra a tarifa, ainda vale dialogar com ele para chamar a atenção para os rumos que o governismo tomou ao atacar um movimento social.

O argumento central não só do texto, como de diversos petistas nesses tempos, é o de que o movimento tem que cobrar mais do Alckmin do que do Haddad, e que o MPL estaria fazendo o contrário. Deveria cobrar mais porque, sendo igualmente responsável pela mobilidade urbana, Alckmin representa um campo político mais à direita, mais autoritário e responsável por outros problemas graves para os trabalhadores da cidade, como é o caso da crise da água e da violência policial. O movimento estaria fazendo o contrário porque (devidamente omitidas as demais ações) se dirigiu à prefeitura e à casa de Haddad em seus atos. Mas mentiras e omissões à parte, existe de fato uma cobrança direcionada a Haddad, que realmente não é poupado pelo MPL. Deveria ser?

Primeiramente, é preciso perceber que desde 2013 o prefeito tem se aliado ao governador na repressão ao movimento, e também que sua suposta “abertura ao diálogo” resultou num conselho que não é ouvido e numa auditoria que evidencia a máfia dos transportes, mas que tem como resposta prática um novo aumento na tarifa que poupa a máfia e atinge a população. Tanto naquela ocasião como agora, Haddad saiu à frente na decisão de aumentar a tarifa e, não sendo ele ingênuo, é de se esperar que saiba do ônus político que tal decisão implica. Para além disso, em 2013, foi o prefeito quem, num movimento péssimo para suas próprias pretensões, recusou ceder ao movimento pela manhã para deixar Alckmin anunciar ao seu lado a revogação do aumento horas depois. E mais: foi de sua boca que saiu o discurso tecnocrata neoliberal sobre “cortar da saúde para baixar a tarifa”. Finalmente, já em 2015 a “abertura ao diálogo” incluiu a reunião de gabinete com supostos “representantes” da luta nas ruas que eram nada mais nada menos que braços do governo, pois há muito tempo é isso que a UNE e congêneres se tornaram. E isso enquanto comparava movimento social a terroristas!

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O que fazer quando o prefeito insiste em reproduzir a atitude típica do governador com relação a esta gentalha?

 

Um prefeito que defende a repressão, poupa o governador, apresenta uma farsa de “abertura ao diálogo” e mantém intocada a máfia dos transportes não é exatamente um interlocutor comprometido em atender demandas populares relativas à mobilidade urbana. Ainda assim, não é estranho que espere-se dele, por ter contado com o apoio de amplos setores da esquerda e dos movimentos sociais em sua eleição, uma maior disposição em ceder às ruas. Logo, poupá-lo seria uma boa opção se o MPL fosse mais um braço do PT e se sua luta fosse para derrotar o PSDB nas urnas. Mas não: o MPL é um movimento social!

Movimentos sociais, quando não são simulacros de movimentos sociais (a exemplo da própria UNE), pensam estrategicamente e não eleitoralmente. Querem avançar suas pautas e não calcular votos ganhos ou perdidos por terceiros. Sendo assim, que sentido teria fazer da luta contra a tarifa um movimento contra Alckmin, preservando o prefeito? Aliás, na lógica de um movimento social mesmo um enfoque maior em Haddad é perfeitamente compreensível e nada tem de “perseguição ao PT”.

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O MPL, pelo contrário, vai ao ato sem a UNE

Isso pode parecer estranho aos petistas hoje, então tratemos de voltar um pouco no tempo. É que, ao se estabelecer no Estado, o petismo se afastou tanto dos movimentos sociais que nem lembra mais o que eles eram originalmente…Então, alguns dados: nos dois últimos anos do governo FHC, os sem-terra fizeram 283 (ano de 2001) e 273 (2002) ocupações. Nos dois primeiros anos do governo Lula, fizeram 555 (2003) e 702 (2004). Será que o MST também “fazia o jogo da direita antipetista”? Ou será que ele agiu como o movimento social combativo que era e viu no PT uma abertura maior para fazer avançar sua pauta do que o governo FHC, com quem não tinha conversa?

Claro que há diferenças, e uma delas é que o MPL, ao contrário do MST, é um movimento essencialmente de juventude e, portanto, há um corte geracional que faz com que não se alimente ali quaisquer esperanças com relação ao PT, pois essa juventude nunca viu o “PT de luta” cuja imagem ainda empolgava muita gente nos anos FHC, muitos inclusive até depois da eleição do Lula, alguns (tiozinhos persistentes!) até o governo Dilma. Afora, claro, que este corte geracional é global por conta do rápido avanço da violência sistêmica (este nome sociologicamente correto pra barbárie do capital), da catástrofe ambiental (ligada a um modelo de crescimento que o PT abraçou com todas as forças) e de outras questões, que fazem com que haja um sentido de urgência política diverso daquele de gerações anteriores. E isso faz diferença porque dificulta enormemente a cooptação por partidos da esquerda tradicional.

Mas há mais do que isso. O MPL não é só mais jovem, ele também difere em seus princípios organizativos, inspirados em tradições diversas daquelas que deram origem tanto ao PT, quanto ao MST. Trata-se, por um lado, do reconhecimento de que há uma luta por mobilidade urbana com suas próprias tradições de contestação e, por outro, da experimentação de formas de organização que tomam de assalto a política em todo o mundo. Formas fundadas na autonomia, na horizontalidade e na recusa de mediações burocráticas. O MPL é de difícil compreensão para os petistas (e, de resto, para quase toda a velha guarda da esquerda) porque nele confluem explosivamente a tradição de revolta urbana por mobilidade (que a esquerda quase sempre ignorou) e a novidade dos movimentos anticapitalistas globais.

Nesta incompreensão e recusa da política do MPL, os petistas tendem a pensar o movimento como sendo ocultamente dirigido pelos partidos políticos da extrema-esquerda, o que é outro equívoco, pois mesmo esses partidos não conseguem ter influência decisiva na definição dessas lutas. A horizontalidade é real e o movimento vem da base. O resto é conspiracionismo digno da extrema direita – e indigno para quem se reivindica entusiasta dos movimentos sociais. A incompreensão se dá porque o MPL é um movimento que se apoia numa tradição de lutas populares e não nos termos da formação política das velhas organizações, que mesmo quando se confrontam e se digladiam não deixam de se compreender mutuamente. Trata-se de um movimento popular, autônomo, que se faz socialista na prática, ao questionar o desenvolvimento do capital em alguns dos focos principais de avanço da sua barbárie hoje: a gentrificação, a especulação imobiliária, a privatização do espaço público, a marginalização social. É por ser um ponto fora da tradição hegemônica da esquerda – já que não tem uma linhagem que lá atrás remete ao partidão, ao sindicalismo pré-AI-5, à teologia da libertação, etc. – que o MPL causa esta perplexidade nos quadros petistas ou que giram em torno do partido.

Um petista entende muito melhor o PSTU ou o PSOL, que saíram de seu ventre, do que um movimento que remete a uma tradição que quase sempre passou por fora do radar da esquerda. Uma tradição que só pode se colocar, viva e intensa, como ação organizada, porque o movimento é autônomo. Quer dizer, porque ele é intransigente quanto à pauta que coloca no horizonte – a Tarifa Zero – e não aceita subordiná-la a outras pressões, particularmente as pressões eleitorais. Considera avanço apenas aquilo que se encaminha para este horizonte e não qualquer alteração de quadro eleitoral que possa advir da sua ação. É um movimento social, fundado numa tradição de luta dos oprimidos, com princípios socialistas libertários, mas aberto ao diálogo com quem mais quiser somar nesta luta. Nesse sentido, faria bem, para entender o MPL, ouvir o que eles gritam nas ruas: “agora é de 3 reais pra baixo”, “chega de tarifa e de político babaca”, etc. Não são gritos contra Haddad ou contra Alckmin, mas de afirmação de sua pauta e de negação das mediações institucionais para chegar a ela.

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Nem Alckmin, nem Haddad: o alvo é a tarifa, o horizonte a Tarifa Zero

Portanto, o MPL não é antipetista, ele só não foi formado pela mesma tradição que o PT e resiste – sempre e com todas as forças – tanto à repressão, quanto à cooptação. O movimento não está nem aí para a popularidade do Alckmiin ou do Haddad, a não ser talvez como informação que permita pensar estratégias para avançar na sua pauta. Para o movimento social, quem tem que pensar em eleições são os partidos e suas lideranças, e não quem está fazendo o que se propõe a fazer, que é travar uma luta anticapitalista contra as catracas que limitam os fluxos humanos nas cidades.

Se Haddad quer ser poupado, que revogue o aumento da tarifa e a bomba cairá integralmente no colo do Alckmin, o prejudicando eleitoralmente. E a questão que fica é: por que petistas que se entendem como apoiadores dos movimentos sociais preferem atacar o movimento ao invés de exigir do seu prefeito que, além de beneficiar milhões de paulistanos, coloque seu maior adversário na arena eleitoral numa situação extremamente difícil? Pois atacar e criminalizar os movimentos sociais é levar a disputa para o terreno preferido do governador, e nele – pensando eleitoralmente – vocês só tem a perder…

Calendário Insurrecional do Brasil

O Brasil foi construído por meios violentos. Em nossa história, já se dizia mais de trezentos anos atrás, “os alicerces assentaram sobre sangue, com sangue se foi amassando e ligando o edifício”. A apropriação da terra se fez e se faz, do século XVI ao XXI, por meio da expulsão, incorporação forçada ou extermínio dos povos indígenas. O mundo do trabalho foi por mais de três séculos dominado pela escravidão, ou seja, pela permanente possibilidade de uso da violência. A unidade política do país foi resultado de negociações e de conflitos sangrentos, com vitórias das forças do Estado sobre movimentos que iam de pequenas agitações de rua a imensas guerras civis, com importante participação popular e um saldo de milhares de mortos. Nossos quase dois séculos como nação independente são uma incessante acumulação de escombros, história de grandes e de pequenas lutas, tragédia de grandes e de pequenos massacres, farsas dos que vivem de apagar os rastros da barbárie para melhor legitimar a civilização que a produz.

Não contamos os eventos sangrentos como glórias do passado. Eles raramente frequentam nossa memória histórica e mesmo nestes casos apenas como acidentes de percurso ou dolorosas mas inevitáveis eliminações de barreiras ao progresso. Aprendemos a ver a história do Brasil como uma linha evolutiva pontuada por eventos supostamente pacíficos. Um “descobrimento” amistoso, uma Independência como “desquite amigável” ou “acordo de elites”, uma proclamação da república à qual o povo assistiu “bestializado”, duas ditaduras implantadas sem resistência imediata e derrubadas sem uma insurreição popular, sendo a oposição aberta ao autoritarismo obra de grupos isolados – “idealistas”, quando não “terroristas”. Avanços nos direitos e na cidadania vêm sempre de cima para baixo: da primeira constituição, oferecida pelo Imperador, à última, fruto de uma abertura política controlada pelo regime autoritário, passando pela Abolição como dádiva de princesa e pelos direitos trabalhistas concedidos pelo Pai dos Pobres. Comportem-se para que o progresso social venha por si mesmo, insurjam-se para que o progresso seja interrompido – esta é a moral da nossa história.

Ocorre que a trajetória encoberta pelo cortejo triunfal do progresso não deixa qualquer perspectiva de paz no futuro. A violência dos poderes públicos e privados não é uma particularidade nossa, mas a consciência tranquila diante dela talvez seja, pois o que mais impressiona em tudo isso é que ainda nos vejamos como um “povo pacífico”. Acostumamo-nos a condenar a menor violência como forma de luta dos oprimidos, mas a toma-la como legítima quando parte dos opressores, por mais exagerada que ela seja. Na mitologia nacional, não somos apenas pacíficos, somos também acomodados, inertes, incapazes para a organização e para a ação política. Por isso a verdadeira Revolução não nos pertence.

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Resistência popular no Pinheirinho, São José dos Campos, SP, 2012

Este discurso, que se construiu junto com a ideia de uma nação brasileira, foi questionado e recolocado em diferentes momentos, sendo 2013 um ano de ruptura nesta tradição. Sob o impacto das grandes manifestações em torno da pauta dos transportes a partir de junho, milhões de brasileiros, sobretudo os mais jovens, irromperam na esfera pública. Para muitos era a primeira oportunidade de um aprendizado político para além dos meios institucionais. Algumas experiências indicaram o potencial de organização autônoma da juventude, caso do próprio Movimento Passe Livre, que vinha de uma trajetória de anos de luta e que desconcertou os políticos tradicionais, incapazes de lidar com uma força política que não se coloca como uma direção. Mas é o caso também das assembleias populares, primeiramente em Belo Horizonte, e das ocupações de câmaras municipais em diversas cidades do país. Outras experiências apontam para a disposição da juventude em enfrentar as mentiras e a força bruta que sustentam a ordem capitalista vigente, o que no plano da luta imediata significou enfrentar a mídia corporativa e o aparelho repressivo estatal, principalmente a Polícia Militar. Uma onda de desobediência atravessa o país, num processo que só aparentemente se esgotou.

Como se verá neste Calendário, essas formas de organização e mobilização têm precedentes importantes. Não é um acaso que o discurso midiático, na tentativa de capturar e deturpar os sentidos da luta popular, se baseou nas imagens de um país acordando e em gritos de “sem violência”. Para eles, a narrativa de uma história pacífica e sem experiências anteriores de organização e luta popular precisava ser restabelecida, depois de ser demolida nas ruas em junho. Tal esforço de manipulação passa pela deslegitimação e criminalização das lutas sociais no Brasil, o que se viu com mais virulência na ofensiva contra os Black Blocs, que contou com bastante adesão nos quadros da esquerda partidária.

Ocorre que nada disso era totalmente novo. “Vândalos”, “bárbaros” e “bandidos” eram alguns dos nomes usados para negar o caráter político da Cabanagem (1835) e da Balaiada (1838), por exemplo. “Agitadores”, “subversivos” e “terroristas” eram os rótulos que a ditadura pós-1964 colocava naqueles que a enfrentavam. A estratégia não é nova: para desmantelar o poder popular, que lhe seja negada a existência como força política e que seja apagada sua história. Feito isso, a brutalidade policial dá conta de sufocar as vozes que vêm das ruas.

Antes que estejamos ainda mais silenciados pela repressão, é preciso lembrar duas coisas. Primeiro, que o povo deste país não acordou em junho porque nunca dormiu, e é por isso que as revoluções, as insurreições e as mobilizações populares como um todo serão lembradas aqui. Segundo, que o slogan “sem violência” só é legítimo se dirigido também, e sobretudo, ao Estado brasileiro, que é o maior algoz de sua população. A brutalidade da polícia não começou em junho. Ela faz parte da rotina de milhões de brasileiros, que vivem constantemente sob um estado de exceção. Por isso, vamos rememorar não apenas as lutas, mas também os massacres. Não só as experiências de organização popular, mas também as chacinas que perpassam ditaduras e “democracias”, como a atual.

Contar a história de um Brasil sonolento e sem violência é uma estratégia dos vencedores do momento, que por sua vez são herdeiros de uma longa tradição de manipulação do passado. Este Calendário Insurrecional do Brasil tem como tarefa romper com a narrativa de um país sem conflitos.

 

“Os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer

Combatemos para que não morram a morte do esquecimento

Combatemos para impedir o inimigo de vencer”

Hino à Rua, 2013

 Baderna Midiática

O Apartheid brasileiro está nu! Sobre os ditos “arrastões” em shoppings

Multiplicam-se nas redes sociais os “rolezinhos” de jovens das periferias para transformar corredores e estacionamentos de shopping centers em bailes funk improvisados.

Os “rolezinhos” são chamados de “invasões” ou “arrastões” pela mídia corporativa.

“Invasão”, no vocabulário da mídia, ocorre sempre que um ou mais pobres e negros se deslocam para um lugar onde “não deveriam estar”, pois numa sociedade segregada há lugares definidos para os diferentes segmentos sociais e raciais.

Já “arrastão” ocorre quando são centenas ou milhares de pobres e negros reunidos onde “não deveriam estar”. Pode ser um shopping ou uma praia de bacana.

Originalmente, “arrastão” era um tipo de crime violento. A estratégia da mídia é a de fazer confundir com assaltos em série a simples reunião de jovens da periferia que, com a criminalização dos bailes funk, decidiu se encontrar nos shoppings e improvisar seus eventos convocados pelo facebook.

Se a rua esta sendo vedada a eles, nada mais natural que achar um novo espaço.

Se quem pede que a rua seja vedada a eles frequenta o shopping, nada mais natural que este novo espaço seja o shopping, onde vão incomodar uma parte dos que devem ser incomodados.

Segregação explícita: próxima moda nos shoppings brasileiros?

Segregação explícita: próxima moda nos shoppings brasileiros?

Com essa atitude de jovens badernistas, o apartheid brasileiro se torna mais visível. Os shoppings daqui já não estão longe de usar aquelas placas “Whites Only” do Sul dos EUA e isso vai ser ainda mais descarado se essa onda de “rolezinhos” ocorrer. Ao mesmo tempo, a violência policial vai se estender para o interior e entorno dos shoppings, como já ocorreu em Vitória e em Itaquera (São Paulo).

A cena é comum em outros espaços, mas de forma alguma no templo dos consumidores endinheirados.

Vitória (ES): a cena brutal é comum em outros espaços, mas de forma alguma no templo dos consumidores endinheirados. Numa sociedade espacialmente segregada entre classes e raças, a aproximação é encarada como invasão de bárbaros

Ou seja, uma derrota, ainda que pequena, da tradição de segregação velada, que esconde e dissimula o confronto, jogando a violência pra periferia.

Só dá pra combater o que é visível.

Que se jogue o apartheid na cara de todos.

Que o confronto seja aberto.

A onda, ao que parece, virá. Se a repressão comer solta como (sempre) promete, é possível que se faça jus ao rótulo de “arrastão” que a mídia quer colar nesses eventos. Dispersar violentamente uma multidão em meio a um templo do consumo teria provavelmente este efeito, afinal trata-se de uma multidão de pessoas formadas como consumidoras sem que tivessem dinheiro para se realizarem como tais.

Neste caso, que ao menos se possa dizer que o fim de ano foi melhor pra muita gente.

Para Falar dos Black Blocs

Não há dia que passe sem que a mídia publique a opinião de mais um intelectual sobre o novo fenômeno das ruas. Para você que não quer ficar de fora, a Baderna Midiática dá a receita de como fazer um típico texto de intelectual midiático “de esquerda” sobre os tão falados black blocs.

Os paralelos históricos são uma ferramenta importante para tentar entender o presente. Mas, com uma pequena dose de má fé ou ignorância, eles também podem ser usados de maneira inversa, para confundir. Como o black bloc é pouco conhecido, uma boa estratégia para desqualificá-lo é dizer que ele é igualzinho a algo que já aconteceu antes. Para uma argumentação mais moderada, recomenda-se compará-lo ao luddismo. Para quem não se lembra, os ludditas foram os quebradores de máquinas que se opuseram à nascente industrialização na Inglaterra no inicio do século XIX. Desde cedo os ludditas entenderam algo que demorou um século e meio para entrar nas cabeças bem pensantes da esquerda ortodoxa: a técnica não é neutra. Mas, apresar disso, os ludditas passaram para o senso comum da esquerda tradicional como exemplo de suma ignorância, pois não teriam entendido que o problema não eram as máquinas em si, mas a exploração capitalista. Da mesma forma, os black blocs, coitadinhos, não entenderam que não adianta quebrar os caixas eletrônicos e as agências bancárias para acabar com o capitalismo. Mas cuidado, essa comparação pode ser perigosa. Os ludditas foram criticados pelo movimento operário posterior porque se limitaram a quebrar máquinas, quando deveriam ter atacado os senhores das máquinas; exigiram a restauração de sua condição anterior de trabalhadores-artesãos, ao invés de questionar sua condição de explorados. É preciso, portanto, ser claro para evitar que a comparação com os ludditas leve a ideias ainda mais radicais – queremos é que os black blocs voltem para casa. A solução é simples. Basta mostrar como os mecanismos do sistema produzem efeitos mais concretos do que o quebra-quebra, e que, logo, é muito mais radical aderir ao sistema do que questioná-lo. Sugestões dos internautas: dizer que “baixar em um ponto a taxa de juros é mais eficaz do que quebrar bancos”, ou que “falta organização política aos black blocs” (por “organização” leia-se: filiação partidária).

A comparação com as Revoluções do passado é salutar. Sabemos bem que a esquerda partidária há muito abandonou toda pretensão revolucionária. Mas ela ainda se vê na obrigação de olhar com bons olhos algumas revoltas de outrora, exemplos dignos do uso da violência. Por conta disso, a esquerda partidária não pode, ao contrario da direita partidária, recusar inteiramente a violência (mas obviamente a violência do Estado não entra nesta conta). É preciso distinguir, então, entre uma violência boa e uma violência má. A principal característica da violência boa, chamada de “violência revolucionária”, é a de ter existido no passado e de não existir mais. Se atual, ela deve necessariamente estar muito longe de nós. Já a característica da violência má é a de estar nas ruas, aqui e agora. Caso tenha duvidas se a violência de um movimento é boa ou não, basta fazer a seguinte pergunta: eu posso tomar parte direta nesse movimento? Se a resposta é “não”, pode falar em “violência revolucionária” sem temor. Assim, pode louvar a violência dos “rebeldes” sírios ou dos resistentes palestinos, sem por isso ter vergonha de desacreditar os black blocs que quebraram a sua agência Bradesco.

Mas, sobretudo, é preciso deixar claro que a violência das Revoluções do passado nada tem a ver com tudo que se passa no presente. Para reforçar esse argumento, você pode insistir no fato de que os sujeitos são outros. A violência de 1917 era fruto da pura união dos explorados operários com os explorados camponeses. Em 1968, os operários se juntaram dessa vez aos estudantes, que, naqueles tempos sim eram revolucionários (“não se fazem mais estudantes como antigamente”, nos dizem os professores que ensinam a esses estudantes!). Para gerar um contraste perfeito, esvazie a subjetividade da violência atual, faça dela uma violência sem sujeito, com o uso de fórmulas repetitivas, tautológicas: “vandalismo de vândalos”, “baderna de baderneiros”. Se achar realmente necessário nomear os sujeitos, a sugestão de um internauta é: aludir a uma aliança entre estudantes baderneiros e criminosos da periferia. Essa alusão tem a vantagem de despertar o medo-classe-média, mas é um pouco forçada e você corre o risco de fazer papel de Bucci.

Para os menos moderados e mais sem vergonhas, recomendamos o paralelo “super-trunfo”: comparar os black blocs aos fascistas italianos. Na falta de argumentos para fundamentar tal comparação (já que esses simplesmente não existem) você sempre pode apelar para a cor da camisa. A analogia é frágil, para dizer o mínimo, mas perante uma plateia de policiais pode colar.

Combate ao autoritarismo e ao monopólio da mídia, apoio a grevistas e feminismo: típicas bandeiras fascistas, não é mesmo?

Combate ao autoritarismo e ao monopólio da mídia, apoio a grevistas e feminismo: típicas bandeiras fascistas, não é mesmo?

Atenção! : desaconselhamos todo e qualquer paralelo com revoltas do passado brasileiro. Nada de falar em balaiada, cabanagem, motim do vintém ou revolta da vacina! Além de não serem chiques como os exemplos europeus, os exemplos tupiniquins podem abalar a ideia de que o povo brasileiro é, por natureza, “pacífico e ordeiro”.

Para aqueles que não gostam do visual retrô e preferem a última moda, nada como evocar o inimigo número 1 da nova ordem mundial: o terrorismo. Nos EUA, o “gigante” do norte, o terrorismo tem feito maravilhas para o avanço do sistema repressivo e de controle da vida dos cidadãos. Aqui no Brasil, ele pode fazer o mesmo. Infelizmente ainda não existem indícios de que os black blocs sejam fundamentalistas, ou mesmo que tenham qualquer religião, e fica difícil apontá-los como braço da Al Qaeda. Mas isso não impede que eles “peguem um avião e joguem no Congresso”, como propôs um senador governista, mais inventivo do que qualquer intelectual.

Já aqueles que preferem o visual clean, nada como a volta do higienismo. E ele está voltando com tudo na esquerda institucional, com suas fórmulas clássicas que parecem não envelhecer. Você pode chamar os black blocs de “parasitas” ou “sanguessugas” que estão se aproveitando das manifestações (para quê, mesmo?) ou qualificá-los de “doença social”, que precisa ser combatida com duros remédios. Sugestão do internauta: “catapora social”, pois é uma doença “epidérmica e superficial” (para dar uma pitada de maringonismo no seu cafezinho)

Poderia ser propaganda neonazista, poderia ser uma capa da Veja, mas não: a fonte é um portal "de esquerda"

Poderia ser propaganda neonazista, poderia ser uma capa da Veja, mas não: a fonte é um portal “de esquerda”

Não se esqueça de lembrar também que o uso das máscaras é prejudicial aos protestos (o link indicado é de uma republicação, pois o original foi tirado do ar). Elas permitem a infiltração de P2s e criminosos. Antes do uso das máscaras a polícia, coitada, não conseguia infiltrar agentes – como se disfarçar sem a máscara do Guy Fawkes, como? E os criminosos, hoje tão abundantes, não tinham vez. Todos sabem, e os índices demonstram, que não havia criminalidade nas grandes metrópoles brasileiras antes de junho de 2013. Você pode ser inclusive o primeiro a dizer que quando os black blocs quebram os caixas eletrônicos não querem manifestar sua posição anticapitalista, mas sim roubar o dinheiro que está ali dentro –só não descobriram como.

Último argumento que não pode faltar: a violência dos black blocs justifica a violência da Policia Militar contra os manifestantes. Trata-se aqui de uma simples inversão de causa e efeito, qualquer um pode fazer. O documentário Com Vandalismo mostra como nos protestos de junho em Fortaleza, manifestantes pacíficos, inicialmente contrários ao “vandalismo”, mudaram de opinião e abandonaram o grito “sem violência” depois de terem sofrido na pele a violência irracional da Policia Militar. O aparecimento de grupos que se valem da tática black bloc é uma resposta à violência com a qual protestos são habitualmente tratados pela polícia que a ditadura nos deixou. Basta lembrar de 13 de junho, quando não se falava em black bloc, e quando a imprensa foi obrigada a admitir que a repressão da manifestação ocorreu sem motivo algum. Portanto, é importante fazer esquecer tudo isso, e fingir que a violência policial começou por causa dos black blocs e não o contrário.

Mais importante de tudo. Não deixe, em nenhum momento, o seu leitor suspeitar que exista relação entre a violência cotidiana nas periferias e a violência das manifestações. Não deixe seu leitor sequer imaginar que o ódio que por vezes os black blocs ostentam pela polícia possa ser em algum grau motivado pelo desprezo desumano e homicida que essa policia ostenta perante uma parte da população. Não deixe, enfim, seu leitor suspeitar que o espancamento do coronel indefeso possa ter algo a ver com as mortes de Amarildo, Douglas, Jean e tantos outros.

Sobre a questão, na Baderna Midiática:

Violência, mas para quê?

A ideologia do controle

O reverso da repressão

Severamente punidos: a mídia demoniza os black blocs

Toda rotina tem sua violência

Quem matamos Amarildo?

Um artigo de Matheus Pichonelli publicado na Carta Capital chama atenção para uma relação que precisa ser estabelecida e debatida, entre o cinema brasileiro recente e a legitimação da violência do Estado. O argumento geral é o de que a plateia que vibrou com as torturas e execuções praticadas em Tropa de Elite autorizou a barbárie que hoje se volta contra ela. O Brasil que aplaudiu de pé o personagem Capitão Nascimento teria optado por negar o papel civilizacional do Estado, pois legitimava a tortura, morte e desaparecimento de muitos, incluindo Amarildo de Souza, assassinado numa UPP durante sessão de choques elétricos e sufocamentos comandada – como no filme – por um oficial do Bope.

Ainda que concordemos com alguns pontos dessa leitura, é preciso questionar outros tantos, retomando assim o intenso debate ocorrido em diversos meios – ligados ao cinema, à militância política, às universidades, etc. – na época do lançamento de Tropa de Elite. O momento atual, em que se discutem mudanças na política de segurança pública e o papel da mídia na criminalização das lutas sociais, impõe esse debate. A presente crítica ao artigo da Carta Capital (que teve o mérito de recolocar a questão) é nossa primeira contribuição nesse sentido. Ela se divide em três partes, sendo a primeira sobre a obra e sua recepção imediata (Por que os aplausos?), a segunda a respeito dos discursos sobre a violência urbana e seus lugares sociais (De onde vêm os aplausos?), a terceira sobre os pressupostos culturais que podem esvaziar uma crítica à violência estatal (Para quem são os aplausos?). A depender dos rumos deste debate, outros textos poderão ser elaborados num segundo momento.

Quem matamos Amarildo? Reflexões sobre cinema e violência no Brasil

 

Parte I – Por que os aplausos?

Tropa de Elite foi um fenômeno cinematográfico único no Brasil das últimas décadas. Sucesso absoluto de mercado (inclusive pirata), de crítica e de público, o filme invadiu a linguagem do cotidiano com os jargões do Capitão Nascimento, gerou intensos debates nos mais variados meios e polarizou posições políticas a respeito da violência estatal, dos direitos humanos, da guerra às drogas e de outros temas. Central naquele contexto era a discussão sobre as intencionalidades envolvidas na produção. Deixando de lado as visões ingênuas de que se tratava de um “retrato fiel e neutro da realidade” ou de “uma produção artística sem compromisso com seu contexto social” restavam duas posições diametralmente opostas: tropa de Elite era uma crítica ou uma legitimação dos métodos de tortura e extermínio nas favelas do Brasil.

Tanto na época quanto hoje – e apesar do que se possa dizer sobre Tropa de Elite 2 (2010) – a posição daqueles de nós que se envolveram em tal debate foi a de que o público que aplaudiu a tortura podia ter (e de fato tinha) muitos defeitos, mas não o de ser incapaz de compreender a obra. O que tinham diante dos olhos era um filme cuidadosamente construído para que a violência estatal (incluindo a tortura e o extermínio) gerassem aplausos.

Todas as opções estéticas e narrativas de Tropa de Elite se encaminham para o reconhecimento de uma figura de herói salvador e redentor no Capitão Nascimento e de uma instituição infalível e incorruptível no Bope. A narrativa a partir de um drama doméstico do narrador onisciente, ao estilo dos filmes policiais norte-americanos, produz uma identificação do espectador que poderia dar margem à crítica desde que em algum momento seus valores inabaláveis ou sua infalibilidade fossem colocadas em questão. Não é o caso, pois os discursos que se contrapõem ao do “herói” são tão toscos que levam à aversão imediata do expectador. No filme, o Bope é a única instituição não dominada pela corrupção, o que vale também para cada um de seus agentes. O “sistema” envolve moradores das favelas, policiais convencionais, universitários, todos estereotipados e estigmatizados como agentes da violência, sendo a “missão” do Bope “corrigir”, pela tortura e extermínio, os males que essas pessoas causam.

Não por acaso, no auge do sucesso de Tropa de Elite um coronel da PM se sentiu autorizado a definir sua instituição como “inseticida social”, pois a desumanização do inimigo estava garantida pela eficácia do discurso de Padilha (e evidentemente, por tudo que veio antes nesse sentido, especialmente na televisão). Naquela ocasião, disse o mesmo oficial que “quem não gosta do caveirão gosta de maconha, quem não gosta do caveirão, gosta de cocaína”. Baseando-se em Tropa de Elite, e não no cotidiano dos morros, seu discurso é verdadeiro: a reação à violência estatal só pode partir de quem tem interesses – como traficante, usuário ou policial corrupto – no narcotráfico. A constatação da relação entre mercado de drogas ilícitas e violência, que poderia servir para questionar a política de guerra às drogas, apenas a reforça. O filme se presta integralmente à defesa da indústria da morte garantida pela criminalização.

Como afirma outro texto que dá sequência a este debate (escrito por Antônio David e publicado no Viomundo), a capa da revista Veja que cristalizou a imagem do Capitão Nascimento como “primeiro super-herói brasileiro” incentiva uma política aberta de tortura e extermínio, num discurso que abusa de eufemismos (como chamar o personagem de “implacável com os bandidos”). Porém, boa parte do que diz aquele semanário sensacionalista encontra sustentação na própria narrativa do filme (sobretudo o primeiro, ainda que a capa tenha vindo na esteira do segundo).

Se uma revista sem nenhuma seriedade jornalística ou compromisso com a democracia criou um super-herói torturador de pobres e negros, seu trabalho foi facilitado por Padilha, que forneceu todas as peças e uma narrativa convincente para essa nova figura do Panteão Nacional – que, aliás, já contava com personagens históricos que cumpriram papéis semelhantes. (Um parênteses: Duque de Caxias, cultuado até hoje como patrono do Exército Brasileiro, se apresentava como “pacificador” diante dos “bandidos” do sertão do Maranhão, que nada mais eram que camponeses rebelados contra as arbitrariedades e o racismo do Estado. Tal como o Capitão Nascimento, ele os exterminou de forma “implacável” e pode legitimamente ser reconhecido como seu precursor.)

O discurso de Tropa de Elite, apropriado e adaptado (mas não inventado) pela mídia conservadora legitimou, como sabemos, as operações de guerra e a criação das UPPs no Rio de Janeiro. Os brasileiros se acostumaram a remakes de Tropa de Elite, com direito a rajadas disparadas de helicóptero e a defesas da tortura como método. Os aplausos continuam, pois o filme já ensinou que os tiros só atingem “bandidos” (nenhuma vítima executada pelo Capitão Nascimento é, como Amarildo, apenas morador do morro) e que a tortura é infalível e necessária (nenhuma vítima de tortura em Tropa de Elite é, como Amarildo, alguém sem envolvimento com o crime e, portanto, incapaz de revelar algo de “útil”).

Amarildo, a vítima-padrão do Bope, não existe em Tropa de Elite, pois os “homens de preto” são infalíveis e suas vítimas são “bandidos”.

O Caveirão, instrumento-padrão do Bope, também não existe em Tropa de Elite, pois os “homens de preto” são destemidos e não os covardes da vida real.

Tudo isso são opções narrativas e estéticas que tendem a provocar aplausos em um público já envolvido pelo discurso da mídia corporativa, que divide o mundo em “cidadãos de bem” e “bandidos”. Nesse discurso, a decisão sobre a vida e a morte, nas mãos dos “infalíveis” do Bope, tem por critério o caráter bom ou mau do indivíduo e não os cortes de classe e raça que os dados sobre violência no Brasil demonstram fartamente. Ao contrário do que afirma o texto de Carta Capital, ser alvo ou não da violência estatal não é questão de sorte e o fato de o primeiro Tropa de Elite terminar com a arma apontada para a plateia não gera qualquer identificação com quem está na mira. Voltaremos a isso num outro momento.

Não, estas armas não estão apontadas para todos os brasileiros.

Não, estas armas não estão apontadas para todos os brasileiros.

Considerando essas e outras opções, é nítido que Padilha desejou aqueles aplausos, ainda que provavelmente não pudesse prever o quanto seria bem sucedido. Pode ter desejado por convicção ideológica (lembremos que o diretor é colaborador do think tank conservador Instituto Millenium) ou por esses aplausos representarem um maior sucesso para sua mercadoria. Mas é ingenuidade crer que não esperasse que sua narrativa fosse apropriada para uma maior legitimação da violência estatal. É difícil imaginar que um diretor de reconhecida competência e capacidade técnica e artística como é José Padilha (talento reconhecido até por Hollywood, que colocou em suas mãos o novo Robocop) tenha feito tantas opções coerentes sem querer.

Mas o leitor pode perguntar: e Tropa de Elite 2? Ele não nega essa intencionalidade ao mostrar tanto os podres da política de segurança quanto as boas intenções de um crítico dos massacres nas favelas? Sem dúvida há uma mudança de perspectiva e uma narrativa mais complexa nessa sequência, mas o essencial já estava dito e podia ser pressuposto. A complexificação da narrativa vai no sentido de integrar a corrupção política à violência urbana. A legitimidade da violência estatal é pressuposta, o problema está na “corrupção”. Afinal, que dizer da cena em que Mathias, um digno oficial do Bope é assassinado ao tentar cumprir seu dever de policial honesto, torturando um “bandido”? A identificação do público deve ser, mais uma vez, com quem tortura para fazer o bem e que, neste caso, é vítima de quem executa para fazer o mal.

Tropa de Elite 2 de fato é um filme crítico à política de segurança no Brasil, mas trata-se da nossa conhecida crítica moral à corrupção e não da necessária e urgente crítica à violência do Estado contra sua população. De resto, com o primeiro Tropa de Elite, Amarildo já estava na conta do Padilha – como estava na de muitas outras pessoas, mas não na de um genérico “Brasil” como afirma o texto da Carta Capital. Como veremos a seguir, as responsabilidades pela violência estatal neste país não se dividem igualmente entre seus cidadãos.

Churchill, as armas químicas e o Brasil

Em seu novo livro, o escritor Eduardo Galeano documenta uma face menos conhecida de Winston Churchill, tido por herói nacional após liderar a Grã-Bretanha contra a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial. Trata-se de sua defesa do uso de armas químicas, que após as catástrofes que causaram na Europa durante a Primeira Guerra, tiveram seu uso restrito no continente.

Em 1919, ele afirmava: “Não consigo entender tantos melindres sobre o uso do gás. Estou muito a favor do uso do gás venenoso contra as tribos incivilizadas. Isso teria um bom efeito moral e difundiria um terror perdurável.”. Em 1937, quando a perspectiva de uma guerra contra os suprematistas “arianos” da Alemanha estava evidente, Churchill parecia não se diferenciar muito de seus inimigos: “Eu não admito que se tenha feito mal algum aos peles-vermelhas da América, nem aos negros da Austrália, quando uma raça mais forte, uma raça de qualidade, chegou e ocupou seu lugar.” Em ambos os casos, as defesas que Churchill faz de políticas de extermínio têm um alvo tão certo quanto amplo: o mundo não-branco, ou ao menos a parte desse mundo que não se organiza em Estados Nacionais soberanos reconhecidos como “civilizados”.

“Tribos incivilizadas”, “peles-vermelhas”, “negros da Austrália” são nomenclaturas que abarcam, cada uma delas, centenas ou milhares de povos, unificados apenas no vocabulário imperialista, ao lado de “bárbaros”, “selvagens”, “aborígenes”, “povos primitivos”, “raças inferiores”. Algumas dessas palavras caíram em desuso, enquanto outras se tornaram, não por acaso, metáforas para caracterizar – e deslegitimar – as lutas populares em geral. Familiar a todos nós, o termo “índio” foi também criado pelos colonizadores, definindo pessoas que se identificam segundo seus próprios termos. Assim como outros grupos explorados, oprimidos e massacrados pelo imperialismo, esses povos se apropriaram de um termo cunhado pelos opressores e com ele elaboraram uma identidade fruto das experiências de luta e resistência. É nesse sentido que se pode falar de uma luta indígena ou de uma consciência racial negra, por exemplo.

Mas retomemos a fala de Churchill, não para reivindicar a perda de seus status de herói (convenhamos que, independentemente desses discursos, ninguém que comanda um Estado que se impõe mundialmente pela violência mereceria este título), mas para tratar da questão dos armamentos e do extermínio. Como já foi dito, as armas químicas foram em grande parte proibidas na Europa após a Primeira Guerra Mundial e passaram, com toda razão, a ser vistas com horror pela cultura ocidental. No entanto, quanto mais se afastam das formas dominantes de organização dessa “cultura ocidental”, mais as pessoas podem ser alvos desse tipo particularmente terrível de violência sem que o agressor sofra consequências por isso. Países cujas populações se horrorizam diante das armas químicas, como os Estados Unidos, a França e Portugal, seguiram fazendo uso delas na África e na Ásia no pós-1945. O fato de que o napalm e o agente laranja se tornaram alvos de campanhas e mobilizações nos EUA após a Guerra do Vietnã foi excepcional, mas não o uso desses armamentos e de outras formas de extermínio em massa legitimados pela ideologia imperialista expressa por Churchill.

E o Brasil? Houve um massacre com armas químicas e biológicas no Brasil?

Um não, muitos! Eles ocorreram principalmente entre os anos 1960 e 1970, facilitados pela generalização do acesso a esses armamentos (muitos deles usados como agrotóxicos) e também pelo regime ditatorial que permitia um silenciamento mais fácil das vozes dissonantes. Trata-se do envenenamento da água de rios, da transmissão intencional de doenças (por exemplo jogando-se objetos contaminados de aviões), e ainda da utilização de armas que se tornaram tristemente célebres no Vietnã, como o napalm e o agente laranja. Em comum, quase todas as vítimas seriam definidas no vocabulário de Churchill como “tribos incivilizadas”, atacadas “quando uma raça mais forte, uma raça de qualidade, chegou e ocupou seu lugar”.

Em 1980 d. Tomás Baduíno afirmava que “como em quase toda a guerra o fim justifica os meios, nessa já foram usadas todas as armas: os cães, os laços, a Winchester 44, a metralhadora, o napalm, o arsênico, as roupas contaminadas com varíola, […]” além das armas jurídicas e ideológicas. O texto era o prefácio a denúncias sobre o massacre dos Nambikwara, que viviam na região do Guaporé, Mato Grosso, e que foram vítimas de agente laranja lançado por aviões de fazendeiros.

Se em quase todas as guerras os fins justificam os meios, a situação é mais grave no caso desta, de uma sociedade que incorporou profundamente a ideologia imperialista contra povos que considera “selvagens”. Mais grave não só pela brutal desigualdade bélica e tecnológica, que faz com que qualquer conflito se torne facilmente um massacre unilateral, mas também porque a justificação está pronta, está dada para uma população que por séculos interiorizou a ideia de que “índio” não é gente – ou de que é menos gente que os demais.

As amas químicas eram relativamente novas no momento do ataque aos Nambikwara, mas não os massacres ou a ideologia que os legitimam. Antes de contarem com a facilidade das armas de destruição em massa, genocidas do poder púbico ou privado usavam no Brasil outros artifícios para, nas palavras de Churchill, difundir “um terror perdurável” – como amarrar pessoas nas bocas de canhões ou desmembrá-las e espalhar as partes de seus corpos, por exemplo. Percorrendo a documentação oficial do governo de Mato Grosso no século XIX nos deparamos com referências a chacinas de indígenas narradas com o mesmo tom burocrático de quem fala da construção de uma ponte ou da redução de uma taxa de comércio. Que episódios como esses sejam pouco conhecidos e que tenha perdurado uma visão pacífica dos contatos interétnicos no Brasil é fruto da internalização da concepção que fundamentava a frase do estadista britânico. Como afirma Antonio Paulo Graça,,”não se exterminam, por séculos, nações, povos e culturas sem que, de alguma maneira, haja uma instância do imaginário que tolere o crime. Se a sociedade brasileira incorre no genocídio, desde sua fundação, e ainda hoje o reitera, é porque existe no imaginário um foro legitimador”.

Por sua vez, o “foro legitimador” pode se voltar contra aqueles que se têm por “civilizados” em oposição aos “selvagens”, mas que entram em rota de colisão com o Estado e o Capital – poderes estes que legitimamente podem reivindicar a ideologia do extermínio em massa. Vítimas da mesma violência que os índios conheciam há séculos, os guerrilheiros que combateram no Araguaia conheceram talvez antes mesmo dos indígenas brasileiros os horrores do napalm.

O agente laranja foi proibido no Brasil em 1977, mas o governo tentou adquiri-lo para uso como pesticida em 1994. Quanto a isso, importa lembrar que o Brasil é um dos países mais permissivos com relação ao uso de venenos na produção de alimentos.

O agente laranja foi proibido no Brasil em 1977, mas o governo tentou adquiri-lo para uso como pesticida em 1994. Quanto a isso, importa lembrar que o Brasil é um dos países mais permissivos com relação ao uso de venenos na produção de alimentos.

Combater o foro legitimador do extermínio indígena passa, antes de tudo, pelo reconhecimento do direito desses povos a terra e a autonomia na definição das formas como se relacionam com a sociedade nacional. Enquanto subordinarmos os direitos desses povos a interesses de quaisquer tipos, por mais legítimos que possam parecer, não estaremos fazendo mais que perpetuar os horrores feitos nos últimos séculos em nome da “civilização” que os comete.

A diferença entre dizer que os índios da Amazônia devem abrir espaço ao progresso e dizer, como Churchill, que não há mal algum em eliminar “raças inferiores” é uma diferença de tom, não de conteúdo.

O coletivo Baderna Midiática apoia a Mobilização Nacional Indígena e a luta contra a ofensiva ruralista expressa na PEC 215/00, PEC 237/13, PEC 038/99, PL 1610/96 e PLP 227/12.

Leitura recomendada, da qual retiramos muitas das informações acima: Victor Leonardi. Entre árvores e esquecimentos: história social nos sertões do Brasil. Brasília: Paralelo 15/UnB, 1996.

Eles também cantaram um dia: 10 canções, 10 revoluções

Eu tenho certeza: eles também cantaram um dia!
Chico Science

Desde junho dezenas de músicas foram lembradas ou criadas por inspiração da experiência viva da tomada das ruas em todo o país. O Hino à Rua, feito pelo coletivo Baderna Midiática, é apenas uma dentre outras canções, como esta e esta. É claro que também surgiram produções puramente mercadológicas, sem qualquer relação com o movimento que tomou as ruas, ou ainda aquelas que, bancadas pela grande mídia, procuram arrancar das manifestações seu espírito contestador. Mas existe hoje, como existiu em todos os momentos como este, a resistência do movimento popular contra os que querem impor suas bandeiras, seus símbolos e suas canções.

O que importa lembrar é que desde que há revoluções e insurreições populares as canções estão presentes a animar a luta. Uma mostra disso está na lista abaixo, na qual incluímos 10 músicas acompanhadas por uma breve apresentação e pela letra traduzida para o português. A seleção inclui apenas canções que são inseparáveis de momentos revolucionários ou insurrecionais, seja porque foram feitas em meio às batalhas, seja porque inspiraram os que lutaram. Começamos nosso percurso na Insurreição de Istambul, ocorrida pouco antes da tomada das ruas no Brasil, e o concluímos mais de 200 anos atrás. A lista poderia ser muito maior, pois ao que parece não há revolução que não se expresse musicalmente. 

Tem outras sugestões para a lista? Deixe seu comentário!

1. Tencere tava havasi (Insurreição de Istambul, 2013)

Uma das belíssimas canções que surgiram dos protestos recentes em Istambul, Tencere tava havasi (“O som das panelas e frigideiras”) foi composta e gravada numa performance de rua pelo grupo Kardeş Türküler. Formado há 20 anos por músicos dos mais diversos grupos étnicos da Turquia (como curdos, árabes e armênios), o grupo sempre teve como objetivo a defesa da diversidade através da música. Em meio à dura repressão do primeiro semestre de 2013, ofereceram aos manifestantes de Istambul e ao mundo uma canção maravilhosa.

Tencere tava havasi trata do movimento que teve início como resistência à derrubada de um parque para a construção de um shopping center. Além do ataque a um espaço frequentado pela juventude, o movimento reagia a uma série de leis arbitrárias que em parte estavam ligadas à “bancada islâmica” (a “bancada evangélica” deles), como é o caso da proibição de venda de bebida apos as 22h. Por isso a música diz que “eles venderam nossos bosques” e também critica “decretos e ordens obstinadas”. O refrão “Venha devagar, o chão está molhado” faz referência a uma das principais armas usadas pela repressão: os jatos de água lançados para derrubar as multidões.

No vídeo, chama atenção também a referência aos pinguins. A razão disso é interessante. No dia em que as manifestações cresceram tanto que não dava mais para a mídia ignorá-las, diversas emissoras cancelaram os telejornais para não ter que mostrar que o país estava tomado por uma insurreição popular. Um deles, a CNN-Turquia decidiu colocou um documentário sobre a vida dos pinguins no lugar do telejornal. A atitude da midia virou piada e os manifestantes passaram a dizer que eles eram os pinguins, ou a resistência da Antártida.

O som das panelas e frigideiras
Chega de declarações inconsistentes e proibições
Chega de decretos e ordens obstinadas
Oh não, já tivemos o suficiente
Oh não, nós realmente estamos fartos
Quanta arrogância! Quanto ódio!
Venha devagar, o chão está molhado

Eles não podiam vender suas sombras
Então ele venderam os bosques
Eles derrubaram, fecharam cinemas e praças

Abrigado em shopping centers
Eu não me sinto como se atravessasse esta ponte
O que aconteceu com nossa cidade?
Está repleta de edifícios

Oh, amada Istambul
Deitada adoecida
Sua beleza arruinada
Quanta desgraça, quanto gás, que luto é este?
Tudo está derrubado pelo chão
O que aconteceu com você?
Me diga, me diga!
Não quero você deste jeito.
Não, eu não quero

Oh não, já tivemos o suficiente
Oh não, nós realmente estamos fartos
Quanta arrogância! Quanto ódio!
Venha devagar, o chão está molhado

2. Kelmti Horra (Insurreição Tunisina, 2011-2012)

A canção Kelmti Horra (“Minha palavra é livre”) foi composta anos antes da insurreição que eclodiu na Tunísia nos últimos dias de 2011. Porém, foi em meio aos protestos que a música se tornou conhecida, principalmente através de um vídeo de Emel Mathlouthi cantando em meio aos manifestantes nas ruas de Túnis. Apesar de não ser a autora da canção, ela já a interpretava desde antes da insurreição. Cantora de protesto, Emel Mathlouthi teve suas músicas proibidas na Tunísia em 2008, quando resolveu se mudar para a França. Retornou a seu país em meio à revolta de 2011.

A Insurreição Tunisina teve início em 17 de dezembro, quando o vendedor ambulante Mohamed Bouazizi ateou fogo ao próprio corpo, num ato de desespero após ter suas mercadorias confiscadas pelo governo. Humilhado pelas autoridades, ele ainda sofreu extorsão ao tentar reaver o que lhe foi tomado ilegalmente (pois não havia proibição do tipo de comércio que ele fazia). Emel Mathlouthi também dedicou uma música a Bouazizi, adaptada de uma canção em tributo a dois anarquistas executados nos Estados Unidos em 1927.

Vivendo há muito sob um governo autoritário, a população reagiu após a autoimolação de Bouazizi, exigindo a queda do presidente Ben Ali, que foi forçado a deixar o poder e convocar eleições menos de um mês após o início dos protestos.

Minha palavra é livre

Eu sou daqueles que são livres e nunca temem
Eu sou os segredos que nunca morrerão
Eu sou a voz daqueles que não cederiam
Eu sou o sentido em meio ao caos

Eu sou o direito do oprimido
Que é vendido por esses cachorros (pessoas que são cachorros)
Que roubam as pessoas do seu pão de cada dia
E batem com a porta na cara das idéias

Eu sou aqueles que são livres e nunca temem
Eu sou os segredos que nunca morrerão
Eu sou a voz daqueles que não cederiam
Eu sou livre e minha palavra é livre
Eu sou livre e minha palavra é livre

Não se esqueça do preço do pão
E não se esqueça a causa da nossa miséria
E não se esqueça de quem nos traiu no momento de necessidade

Eu sou daqueles que são livres e nunca temem
Eu sou os segredos que nunca morrerão
Eu sou a voz daqueles que não cederiam
Eu sou o segredo da rosa vermelha
Daquela que colore os anos amados
Que perfuma os rios enterrados
E que se espalhou feito fogo
Convocando os que são livres

E sou uma estrela brilhando na escuridão
Eu sou um espinho na garganta do opressor
Eu sou um vento tocado pelo fogo
Eu sou a alma daqueles que não estão esquecidos
Eu sou a voz daqueles que não morreram

Vamos fazer barro do aço
E construir com ele um novo amor
Que se torna passáros
Que se torna um novo país/lar
Que se torna vento e chuva

Eu sou todas as pessoas livres do mundo juntas
Eu sou como uma bala

3. El pueblo unido, jamás será vencido (Luta popular e resistência ao golpe no Chile, 1973)

 “O povo unido jamais será vencido”: traduzido para os mais diversos idiomas, este é certamente um dos gritos mais presentes em manifestações no mundo todo. A frase, inspirada no discurso de um líder político colombiano, era um dos lemas da campanha da Unidade Popular no Chile, responsável por levar Salvador Allende ao poder e, com ele, a organização que vinha sendo construída há anos pelo povo chileno. A melodia é do compositor Sergio Ortega Alvarado, enquanto a letra é da banda Quilapayún – importante representante da Nueva Canción Chilena, ao lado de Victor Jara, dentre outros. O grupo também foi o primeiro a gravar a canção, num concerto ao vivo apenas três meses antes do golpe de estado que derrubou Allende.

O vídeo acima foi gravado no momento de maior radicalização política da história do Chile, quando a organização popular se mostrava poderosa diante de seus inimigos internos e externos. O golpe dado por Augusto Pinochet com apoio aberto das potências capitalistas, especialmente os EUA, massacrou a organização do povo, os músicos da Nueva Canción e todos que estavam no caminho do imperialismo e das classes dominantes chilenas. De experiência democrática socialista, o Chile se tornou o laboratório do neoliberalismo sob um regime que está entre os mais brutais da história do continente.

Mas a memória daquela experiência não se apagou nem durante nem após a ditadura de Pinochet, o que se percebe inclusive na presença da canção composta e rapidamente sufocada em 1973. É o mesmo grito que se ouviu quando um milhão de chilenos tomaram as ruas há poucos anos. O registro, feito por um brasileiro, é emocionante.

O povo unido, jamais será vencido!

De pé, cantar que vamos triunfar.
Avançam já bandeiras de unidade.
E você virá marchando junto a mim
E assim verá seu canto e sua bandeira florescer,
A luz de um vermelho amanhecer
Já anuncia a vida que virá.

De pé, lutar, o povo vai triunfar.
Será melhor a vida que virá
Conquistar nossa felicidade
Em um clamor de mil vozes de combate se levantarão
Dirão canção de liberdade
Com decisão a pátria vencerá.

E agora o povo que se levanta na luta
Com voz de gigante gritando: Enfrente!
O povo unido, jamais será vencido!
O povo unido jamais será vencido!

A pátria está forjando a unidade
De norte a sul se mobilizará
Desde a salina ardente e mineral
Aos bosques do sul unidos na luta e trabalho
Irão, a pátria cobrirão,
Seu passo já anuncia o porvir.

De pé, cantar o povo vai triunfar
Milhões já, impõe a verdade
De aço são ardente batalhão
Suas mãos vão levando a justiça e a razão
Mulher, com fogo e com coragem
Já está aqui junto ao trabalhador.

4. La Vie S’ecoule La Vie S’enfuit (Insurreição de Paris, 1968)

Gravada pela primeira vez em 1974, com interpretação de Jacques Marchais, a música foi atribuída a um anarquista anônimo, suposto participante da greve que paralisou a região belga da Valônia em 1961. Mas na verdade a música foi composta por Raoul Vaneigem, um dos principais nomes do movimento situacionista. E mesmo se alguns situacionistas estiveram presentes na greve belga, entre eles o próprio Vaneigem, a composição deve ser mais justamente associada à insurreição parisiense de Maio de 68, na qual os situacionistas tiveram um papel importante.

La Vie S’ecoule La Vie S’enfuit não foi a única canção a nascer de Maio de 68, tampouco a única escrita pelos situacionistas – poderíamos pensar, por exemplo, na canção do CMDO, o comitê de ocupação da Sorbonne. Mas a canção de Vaneigem exprime, talvez melhor que outras, o “rastro luminoso dos situacionistas” (Kurz) que formou o espírito dessa revolta. Nela encontramos a recusa de toda forma de representação política (partidos, dirigentes, Estado), a valorização da revolta como festa e, sobretudo, a crítica de um mundo no qual a nossa própria vida continua a nos escapar. Na oscilação entre um trabalho que não queremos e o consumo de mercadorias que não precisamos, a nossa “juventude morre de tempo perdido”.

A vida se esvai, a vida escapa.

A vida se esvai, a vida escapa
Os dias desfilam ao passo do tédio
Partido dos vermelhos, partido dos cinzas
Nossas revoluções são traídas

O trabalho mata, o trabalho paga
O tempo se compra no supermercado
O tempo pago não volta mais
A juventude morre de tempo perdido

Os olhos feitos para o amor de amar
São o reflexo de um mundo de objetos
Sem sonho e sem realidade
Somos condenados às imagens

Os fuzilados, os famintos
Vem até nós do fundo do passado
Nada mudou, mas tudo começa
E vai amadurecer na violência

Queimem, covis de padres
Ninhos de mercadores, de policiais
No vento que semeia a tempestade
Colhem-se os dias de festa

Os fuzis sobre nós dirigidos
Contra os chefes vão se virar
Sem mais dirigentes, sem mais Estado
Para aproveitar de nossos combates

5. Bella Ciao (Resistência ao fascismo na Itália, décadas de 1930-40)

A heroica história da resistência ao fascismo na Itália deixou uma belíssima herança musical, a começar por Il Ribelli della Montagna, canção que inspirou nosso Hino à Rua. No caso de Bella Ciao, o canto ganhou o mundo, dos EUA à Palestina, passando pelas recentes manifestações de Istambul.

A melodia já existia desde pelo menos o final do século XIX, sendo originalmente uma música cantada no trabalho de colheita nos campos da Itália. A letra, por sua vez, foi adaptada para a luta contra a Primeira Guerra Mundial e posteriormente apropriada pela luta antifascista dos anos 1930 e 1940, sendo esta versão a que se tornou mundialmente famosa. Trata-se de um canto que exalta a luta do partigiano – o guerrilheiro da resistência antifascista – e a justiça de sua causa.

Linda adeus!

Esta manhã, acordei
Linda adeus, linda adeus, linda adeus, adeus, adeus
Esta manhã, acordei
E encontrei o invasor

Oh guerrilheiro, me leve embora
Linda adeus, linda adeus, linda adeus, adeus, adeus
Oh guerrilheiro, me leve embora
Pois sinto que vou morrer

E se morro como guerrilheiro
Linda adeus, linda adeus, linda adeus, adeus, adeus
E se morro como guerrilheiro
Você deve me enterrar

Enterrar lá em cima, na montanha
Linda adeus, linda adeus, linda adeus, adeus, adeus
Enterrar lá em cima na montanha
Embaixo da sombra de uma bela flor

E as pessoas que passarão
Linda adeus, linda adeus, linda adeus, adeus, adeus
E as pessoas que passarão
E dirão: que bela flor

É esta a flor do guerrilheiro
Linda adeus, linda adeus, linda adeus, adeus, adeus
É esta a flor do guerrilheiro
Morto pela liberdade

6. A las barricadas (Resistência armada ao fascismo na Espanha, 1936-1939)

A letra de A las barricadas foi publicada em 1933 na revista anarquista Tierra y Libertad. O texto foi escrito por Valeriano Orobón Fernández, sobre a ária da Varsoviana, canção entoada pelo movimento operário polonês no fim do século XIX, e apropriada mais tarde pelos revolucionários russos em 1905 e em 1917. Orobón Fernandez foi teórico e militante anarcossindicalista, e morreu durante a Guerra Civil Espanhola. Ele era um dentre os cerca de dois milhões de filiados da Confederação Nacional do Trabalho (CNT-AIT), a maior organização anarquista da Espanha.

A revolução social espanhola foi amplamente libertária, a autogestão se impôs nas zonas urbanas e a coletivização nos campos – sobretudo nas regiões de maior presença dos sindicatos anarquistas, como a Catalunha. Mas as “negras tormentas agitavam os ares”, e o golpe militar de Franco lançou a Espanha numa sangrenta guerra civil. A las barricadas é um chamado ao combate contra o fascismo, e se tornou um hino da luta contra as tropas golpistas. O chamado foi, aliás, atendido por revolucionários de todo o mundo, reunidos nas Brigadas Internacionais. Mas, infelizmente, isso não foi o suficiente para superar o exército de Franco, que contou com o apoio das potências capitalistas, notadamente da Alemanha nazista e da Itália fascista. A derrota dos republicanos se deveu também às cisões internas na esquerda. A ascensão dos comunistas aliados a Moscou (e, portanto, a Stalin) se fez à custa do enfraquecimento das vertentes libertárias (como a CNT-AIT) e não alinhadas (como o POUM), debilitando fortemente o lado revolucionário.

Às barricadas

Negras tempestades agitam os ares
nuvens escuras nos impedem de ver,
ainda que nos espere a dor e a morte,
contra o inimigo nos chama o dever.

O bem mais precioso é a liberdade
Há que defendê-la com fé e coragem
Levanta a bandeira revolucionária
Que do triunfo sem cessar nos leva a emancipação*

Em pé povo obreiro à batalha!
Há que derrotar a reação!
Às barricadas! Às barricadas!
Pelo triunfo da Confederação

* Trecho adaptado a partir de outra versão da letra, dado que a original não tem correspondente em português

7. La Cucaracha (Revolução Mexicana, 1910)

Nem todos sabem, mas La Cucaracha, música mundialmente famosa e apropriada para os fins mais diversos, é antes de tudo uma canção revolucionária. Mais precisamente, uma canção bem-humorada para uma revolução com aroma de marijuana. Não se sabe precisar sua origem, mas a melodia parece remeter ao cancioneiro medieval espanhol. Contudo, foi a partir da Revolução Mexicana, iniciada em 1910, que ela se tornou um grande sucesso.

La Cucaracha não tem uma letra definida, intercalando-se o refrão e versos os mais variados, que se adaptam a temas e contextos e podem ser improvisados. O próprio nome, “a barata”, poderia ter sentidos diversos – era uma gíria para a maconha consumida massivamente no México, era o apelido do carro usado pelo revolucionário Francisco Villa, era um nome usado para definir a própria Revolução que, como uma barata em fuga, corria em direções imprevisíveis.

No decorrer da Revolução, muitos versos foram feitos satirizando diversos personagens e situações. Incluímos um deles, que faz referência a Carranza, liderança revolucionária liberal contestada e combatida pelas armas por setores indígenas e populares; e a Francisco Villa (também conhecido como Pancho Villa), que ao lado de Emiliano Zapata foi o personagem mais famoso do lado popular da Revolução. Com bom humor, os rebeldes cantavam que usariam os fartos bigodes de Carranza para decorar o sombrero de Villa.

A Barata

[refrão]
A barata, a barata
Já não pode caminhar
Porque não tem, porque lhe falta
Marijuana pra fumar

[um dos versos do contexto da Revolução]
Com a barba de Carranza
Eu vou fazer uma fita
Pra colocá-la no chapéu
Do senhor Francisco Villa

8. La Semaine sanglante (Comuna de Paris, 1871)

Jean-Baptiste Clément foi um dos insurretos da Comuna de Paris e compôs duas músicas que são associadas a essa revolta: Le temps des cerises e La semaine sanglante. A primeira, mais famosa, é na verdade uma canção de amor, composta alguns anos antes, e ulteriormente dedicada a uma enfermeira assassinada na repressão à Comuna. A segunda foi composta durante a chamada “semana sangrenta” e representa a repressão violenta ao movimento, o massacre dos insurretos pelas tropas do exército francês, que deixou mais de 20 mil mortos. O próprio Clément foi condenado à morte, mas conseguiu escapar e passou dez anos na clandestinidade. Mais a tarde ele contaria: “Eu ainda estava em Paris quando fiz essa canção. (…) Do local onde me haviam abrigado (…) ouvia todas as noites tiros de fuzil, prisões, gritos de mulheres e crianças. Era a reação vitoriosa que continuava sua obra de extermínio”.

Se a cidade de Paris pôde ser chamada de a “capital do século XIX” (Benjamin), isso não se deve apenas à sua importância cultural. Paris foi também a capital das revoluções. Entre 1789 e 1968, ela foi a cidade “de um povo que por dez vezes enchera suas ruas de barricadas e pusera em fuga seus reis” (Debord). A mais radical dessas revoluções foi sem dúvida a Comuna de Paris, a única que não se deixou trair, que não foi apropriada pelas classes dominantes, que não deu lugar a um novo governo autoritário. E por isso ela enfrentou também a repressão mais violenta de todas. A música de Clément nos conta essa repressão, mas não deixa de afirmar a necessidade da revolta. Da Comuna resta ainda a vontade da revanche, e a promessa de que “os maus dias acabarão”.

A semana sangrenta

Além de moscas e policiais
Não se veem pelos caminhos
Mais que velhos tristes em lágrimas
Viúvas e órfãos
Paris transpira miséria
Mesmo os felizes tremem
A moda está no conselho de guerra
E os pavimentos estão ensanguentados

Sim, mas…
Nada está decidido
Esses dias ruins acabarão
E cuidado com a revanche
Quando todos os pobres se engajarem

Batem, acorrentam e fuzilam
Todos aqueles que pegam ao acaso
A mãe ao lado de sua filha
A criança nos braços do velho
Os castigos da bandeira vermelha
São substituídos pelo terror
De todos os crápulas
Serventes de reis e imperadores

Eis-nos rendidos aos jesuítas
Aos Mac Mahon aos Dupanloup
Vai chover água benta
Os ofertórios vão encher de dinheiro
A partir de amanhã em júbilo
E a igreja de São Eustáquio e a Ópera
Vão concorrer mais uma vez
E as prisões de trabalho forçado ficarão cheias

Amanhã as Manons, as Lorettes
E as damas dos belos subúrbios
Colocarão em suas lapelas
Fuzis e tambores
Todos vestirão o tricolor
A moda do dia e as fitas
Enquanto o herói Pandore
Fará fuzilar nossos filhos

Amanhã os policiais
Florescerão sobre as calçadas
Orgulhosos de seus serviços
E a pistola a tiracolo
Sem pão, sem trabalho, sem armas
Nós seremos governados
Por moscas e policiais
Tiranos e padres

O povo na coleira da miséria
Será ele sempre esmagado?
Até quando os homens de guerra
Vão ter a dianteira?
Até quando a Santa Camarilha
Nos tomará por gado ruim?
Até quando enfim a República
Da justiça e do trabalho?

9. The Smashing of the Van (Resistència irlandesa à dominação inglesa, 1867)

Elaborada em meio a uma das muitas ondas de rebeldia irlandesa contra a dominação inglesa, The smashing of the van narra a história de três jovens condenados à morte após resgatarem duas lideranças presas. O ataque a um comboio de transporte de detentos ocorreu em setembro de 1867 e resultou na morte de um policial inglês. Segundo a defesa dos irlandeses, a morte foi acidental, fruto da tentativa de arrombar a fechadura do veículo a tiros. Condenados à forca, os três rebeldes ficaram conhecidos como os mártires de Manchester – cidade onde ocorreu a ação.

A canção recebeu outra versão quando a história do resgate de presos e da repressão se repetiu, no começo do século XX, com membros do Exército Republicano Irlandês (IRA) e se tornou um dos principais hinos da luta contra o domínio inglês. Disponibilizamos aqui a versão da banda folk The Wolfe Tones, mas ela também foi gravada pelo grupo Chumbawamba. The smashing of the van conjuga elementos da religiosidade e do nacionalismo popular da Irlanda com um apelo de caráter universal – o da legitimidade da resistência à tirania por via da ação direta.

A destruição do camburão*

Prestem atenção bravos irlandeses e ouçam um tempinho
Vou lhes cantar os louvores aos filhos da Ilha da Erin
Daqueles heróis corajosos que correram voluntariamente
Para libertar dois trevos irlandeses de um camburão Inglês

Meu rapazes pela liberdade, vamos todos com a mão no coração.
Que o Senhor tenha misericórdia dos garotos que ajudaram a destruir o camburão

Em 18 de Setembro, era um ano terrível
Quando a dor e a emoção correram por toda Lancashire
Em uma reunião dos garotos irlandeses cada homem se ofereceu
Para libertar os prisioneiros irlandeses do camburão

Em uma manhã em Manchester aqueles heróis concordaram
Seus líderes, Kelly e Deasy, deveriam ter sua liberdade
Brindaram à Irlanda e logo fizeram o plano
Encontrar os prisioneiros na estrada, tomar e destruir o camburão

Com destemida coragem aqueles heróis foram e logo o camburão parou
Eles tiraram os guardas de trás e da frente e então quebram em cima
Mas ao estourar a tranca, eles sem querer mataram um homem
Então três homens deverão morrer na forca por destruir o camburão

Então agora amáveis amigos vou concluir, eu acho que seria certo
Que todos os Irlandeses sinceros se unissem
Juntos devemos nos compadecer, amigos, e fazer o melhor que pudermos
Para manter as lembranças sempre verdes dos garotos que destruíram o camburão

* Traduzimos como “camburão” para não perder o sentido de que se tratava de um veículo para transporte de prisioneiros

10 – The Triumph of General Ludd (Luddismo, 1812)

Esta canção é encontrada com algumas variações, sendo provavelmente composta no auge da rebeldia dos ludditas, no início da década de 1810. Trabalhadores têxteis que se voltavam contra a maquinaria moderna e a alienação do trabalho, os ludditas invadiam as fábricas com os rostos cobertos e no escuro da noite, destruindo e sabotando as novas máquinas. Muitos dos textos que deixaram (como petições ao parlamento e ameaças a industriais caso não se livrassem dos equipamentos) são assinados por Ned Ludd (ou General Ludd). Personagem que se situa entre o mito e a história, Ludd era o novo Robin Hood dos trabalhadores ingleses. A reação do Estado ao luddismo foi de uma violência atroz, incluindo a aprovação da pena de morte para o crime de destruição de máquinas.

A versão que indicamos é a do álbum English Rebel Songs 1381–1984 da banda Chumbawamba. Para quem quiser conhecer as tradições musicais rebeldes da Inglaterra, recomendamos o álbum como um todo, que inclui outra canção desta lista – The smashing of the van.

O Triunfo do General Ludd

Sem mais cantorias de suas velhas rimas sobre o velho Robin Hood
Suas proezas eu pouco admiro
Eu vou cantar as conquistas do General Ludd
Agora, o herói de Nottingham Shire
Esses motores de dano foram sentenciados à morte
Por unanimidade de votos do sindicato
E Ludd que não pode desafiar a decisão
Foi feito o grande carrasco
Quer guardado por soldados ao longo da rodovia
Ou protegido de perto num quarto
Ele os faz estremecer de noite e de dia
E nada pode suavizar sua destruição
E todo o time de humildes não deve mais ser oprimido
E Ludd deve embainhar sua espada conquistadora
E seja sua reivindicação prontamente atendida com reparação
Que a paz deve ser rapidamente restaurada
Deixe o sábio e o grande prestar sua ajuda e aconselhar
Nunca antes a sua ajuda retirar
Até que o trabalho árduo ao preço antigo
Esteja estabelecido por costume e lei.

Nota de apoio ao povo Munduruku

Das ruas em revolta, dos mascarados que não se ajoelham perante a repressão que segue, dos negros e negras maloqueiras que reagem contra o racismo, dos renegados que não se envergam na luta contra o capital, das favelas que teimam em não se emudecer ao som da bala, das mulheres que sobejam coragem e dizem não! ao machismo, das trans e homossexuais que resistem com punhos em riste por respeito, de todos os povos e pessoas que gritam em peito aberto pela Liberdade, daqueles que não querem o dia terminado até que caia a última das opressões: o nosso irrestrito apoio e as nossas saudações ao povo Munduruku.

Estamos a postos!

. Que saiam as Forças Armadas do território Munduruku.

. Que parem as pesquisas de EIA na região.

. Que parem as construções de hidrelétricas.

. Que se ouçam os Munduruku e que se respeitem as suas decisões acerca do seu próprio destino

 

ASSINAM:

– Das Lutas – RJ

– Campanha Reaja ou será morta, Reaja ou será morto – BA

– Quilombo Xis – Ação Cultural Comunitária – BA

– Aldeia Maracanã – RJ

– Rio40Caos – RJ

– Laboratório de Direitos Humanos de Manguinhos – RJ

– Jornal O Cidadão da Favela da Maré – RJ

– Justiça Global – RJ

– Rede Universidade Nômade

– Ocupa-Belem – PA

– Amazonia em Chamas – PA

– Coletivo Projetação – RJ

– Coletivo Baderna Midiática – SP

– Favela Não Se Cala – RJ

– UniNomade Garoa – SP

– Pré-Vestibular para Negros e Carentes – PVNC – RJ

 

Adenilson Kirixi Munduruku, assassinado pela Polícia Federal com três tiros em novembro de 2012

Adenilson Kirixi Munduruku, assassinado pela Polícia Federal com três tiros em novembro de 2012

 

MAIS INFOS:

Carta dos Munduruku ao Governo Federal
Por que a Polícia Federal matou Adenilson Munduruku?

11 de Setembro: duas datas, uma única história.

O golpe militar no Chile, que inaugurou uma das mais sangrentas ditaduras que a América Latina já conheceu, completa hoje 40 anos. Atualmente, é sempre preciso fazer um esforço para lembrar o significado da data, que é mais facilmente associada ao atentado ocorrido em Nova York, em 11 de setembro de 2001. Mas os aviões comerciais que derrubaram as Torres Gêmeas não deixam ter algo em comum com os aviões do exército chileno que bombardearam a sede da presidência, o Palacio de la Moneda, em 1973.

11 de setembro de 1973

11 de setembro de 1973

Como se sabe, a derrubada do governo de Salvador Allende foi inteiramente assistida pelo governo dos Estados Unidos. Vale lembrar que para além do apoio militar e estratégico ao golpe, Washington havia primeiramente submetido o país latino-americano ao boicote econômico, com o fim de desestabilizar o governo socialista de Allende. O martírio do povo chileno havia assim começado anos antes do golpe, mas se tornaria certamente mais difícil após a ascensão dos militares ao poder. O Chile ditatorial foi também o laboratório onde os economistas da escola de Chicago puseram em prática as teses do neoliberalismo, uma nova forma de gestão da economia especialmente prolífica na produção de crises e no aumento da desigualdade social. A eclosão da crise do petróleo, no mesmo ano, permitiu que o modelo keynesiano do Estado de bem estar social fosse posto em questão, e que o neoliberalismo se tornasse o novo dogma econômico do mundo capitalista. Isso foi acompanhado de um novo avanço norte-americano sobre o Oriente Médio, principal região fornecedora de petróleo. Para garantir o domínio da região, os Estados Unidos se valeram de todas as armas que lhe pareceram boas – estabeleceram alianças com ditadores, fomentaram golpes, incentivaram o imperialismo de Israel, seu eterno aliado, e também armaram exércitos rebeldes que viessem a combater a influência russa sobre a região. Foi esse último caso que deu origem aos guerreiros de Osama Bin Laden, os mesmos que mais tarde realizariam os atentados em Nova York.

Mas os ataques da Al Qaeda não são apenas uma consequência invertida do imperialismo Estadunidense. Eles inauguram, na verdade, uma nova fase desse imperialismo. Sob o pretexto de enfrentar um inimigo sem pátria e sem rosto, o “terrorismo”, os Estados Unidos têm conseguido legitimar as mais ilegítimas das ações imperialistas. De um lado, avança, de forma cada vez mais inescrupulosa, nas práticas de espionagem intra e extraterritoriais. De outro, inventa novas ações militares que submergem o mundo árabe em intermináveis guerras. De Bush a Obama, nenhuma ruptura. Depois de intervenções desastrosas no Afeganistão e no Iraque, os exércitos americanos preparam-se para levar a Síria um novo banho de sangue em nome da paz.

Uma história em comum une, portanto, o 11 de setembro de 1973 ao 11 de setembro de 2001. Ambos os eventos são episódios trágicos da história do imperialismo Estadunidense. História que ainda se desenrola sob nossos olhos.

Toda rotina tem sua violência: poema

A alienação é a rotina do trabalho

O trabalho é a rotina do peão

Explorar é a rotina do patrão

Em casa a rotina é acordar cedo

Nas ruas, a rotina… é o medo

 

O massacre é a rotina da prisão

A rotina do Estado é a exceção

O castigo é a rotina do quartel

A rotina do empresário… é o cartel

 

O grito é a rotina que faz bem

O silêncio é a rotina que convém

A quem faz da opressão uma rotina

Não importa se de farda… ou de batina

 

O protesto é a rotina do decente

Da gente que enfrenta o genocídio

Pro índio a rotina é a chacina

A rotina da favela é o obituário

A rotina do palácio… é o contrário

 

Sonegar é a rotina de quem tem

O capital tem a rotina do desdém

A rotina de quem diz que é sustentável

É tornar saber indígena… coisa rentável

 

A rotina da polícia é a vingança

A luta é a rotina da mudança

A rotina da mídia é o cinismo

A rotina do playboy… é o higienismo

 

A violência é a rotina do peão

A violência é a rotina da prisão

A violência é a rotina que convém

A violência é a rotina do desdém

A violência é a rotina do quartel

A violência do empresário é o cartel

 

Não se trata de quebrar uma agência

Toda rotina tem sua violência

 

Baderna Midiática

Toda rotina tem sua violência

Do rio que tudo arrasta se

diz que é violento

Mas ninguém diz violentas as

margens que o comprimem

 (Bertolt Brecht)

 

salvador

Salvador, 7 de setembro de 2013: retrato de uma rotina (clique na imagem para assistir)

Violência: palavra onipresente no discurso dos políticos e da mídia. Usada para definir a ação de quem luta, ela está no centro de uma campanha midiática para a criminalização do movimento das ruas. Não é de hoje que os poderes estabelecidos, fundados eles mesmos na violência cotidiana, fazem um uso redutor dessa palavra. Respondendo a esta campanha, que tem a seu lado governos de diferentes partidos e grupos de mídia supostamente inimigos, procuramos questionar neste video uma visão parcial que pretendem tornar um consenso.

O video pode ser assistido no Youtube com legendas em quatro idiomas e em breve estará disponível para download. Também publicamos a poesia em português, espanhol, inglês e francês. Recomendamos ainda uma série de textos sobre a rotina da violência postados neste site.

“Porque eu quis” (e porque a democracia de exceção me permite)

Um vídeo divulgado logo após as manifestações de 7 de setembro em todo o Brasil já ultrapassou a marca de meio milhão de visualizações. O que choca não é a violência da ação policial – muito menos brutal que nas imagens produzidas no mesmo dia em São Paulo e em Salvador, por exemplo –, mas a tranquilidade e o deboche da autoridade responsável ao ser questionado sobre sua ação arbitrária. A certeza da impunidade do Capitão Bruno, do batalhão de choque de Brasília, não é uma excentricidade dele. A agressão aos manifestantes sem outra justificativa que não a de que fiz “porque eu quis” requer um complemento: “fiz porque os dispositivos de exceção presentes na democracia brasileira me permitem, fiz porque neste país não há qualquer risco de que um abuso ou um crime de minha parte venha a ser julgado por civis, fiz e poderia fazer muito mais (inclusive torturar e matar) sem que isso me trouxesse problemas sérios”.

A prepotência de um oficial que se percebe acima das leis que regem a população civil esconde, por sua vez, o fato de que a repressão interna aos quartéis regidos por códigos militares por vezes coloca os soldados abaixo das leis. Eles raramente recebem alguma punição quando massacram a população civil, mas frequentemente recebem punições duras caso se manifestem por questões trabalhistas, ou ainda caso hesitem em cumprir ordens. Quando, em meio às jornadas de junho, um policial de São Paulo se recusou a partir com uma viatura para cima de manifestantes, colocando a vida destes em sério perigo, ele correu muito mais risco de punição do que se tivesse exterminado pessoas às dúzias pelas ruas da cidade. Muito provavelmente, ele teve sua punição, ao contrário de seus colegas que formam grupos de extermínio na cidade.

Para elucidar que ordem jurídica é esta em que a segurança pública está fora do controle das instituições democráticas, publicamos um texto elaborado em novembro de 2011, no contexto da última ocupação da reitoria da USP – fato que antecipou muitos pontos do debate atual sobre a necessidade de desmilitarização da polícia, sobre o direito de manifestação e sobre as estratégias de criminalização por parte da mídia corporativa.

Notas sobre a PM e a exceção brasileira

Salvo indicação as informações elaboradas abaixo bem como a bibliografia pertinente encontram-se em Jorge Zaverucha, « Relações Civil-Militares : O legado autoritário da constituição brasileira de 1988 » In. : Telles, Edson et. Safatle, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo : Boitempo, 2010, pp. 41-76

***

Segundo a Constituição Federal de 1988, mesmo em tempos de paz, a Polícia Militar é uma força de reserva do exército (CF. 144-IV, §6), situação no mínimo incomum em regimes democráticos consolidados. Por outro lado, essa característica é marcante nos regimes autoritários, que compreendem que o Exército tem prioridade na manutenção da Lei e da Ordem Social.

O governo federal é responsável pela organização das PMs , suas tropas e seus armamentos, estando subordinada aos Governadores (CF 1988 artigo 22-XXI.). As PMs estão atreladas aos planos de defesa interna e territorial do Exército. Em caso de subversão da ordem, as PMs passam ao controle das Regiões Militares do Estado.

Na constituição de 1988, a organização das PMs (tipo de armamento, alinhamento das tropas, construção de novos quartéis) fica a cargo da Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), orgão vinculado ao ministro do exército. A IGPM foi criada através do decreto n° 61.245, de 28 agosto de 1967, buscava coordenar as ações das Polícias Militares nos diversos estados, bem como ressaltar o controle federal sobre as mesmas. Em 1998, a IGPM foi substituída pelo Comando de Operações Terrestres (Coter), orgão operacional dirigido por um general de exército. (Para efeitos de comparação o IGPM era um orgão burocrático sob comando de um general de brigada ou de divisão, o Coter é um orgão operacional dirigido por um general formado para comandar tropas em campos de batalha).

As PMs copiam o modelo de batalhões de infantaria do Exército. São regidas pelo mesmo código Penal e de Processo Penal Militar , seu regulamento disciplinar é muito semelhante ao do exército, conforme decreto n°667, de 2 de julho de 1967.

O Código Penal Militar, por sua vez, é fruto do decreto Lei n°1001 de 21 de outubro de 1969, decretado pelos ministros da Marinha, Exército e Aeronáutica, usando das atribuições que lhes confere o art. 3º do Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o § 1° do art. 2°, do Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968 (Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1001.htm). Neste sentido, os soldados da PM, ao cometerem algum crime contra civis no exercício de suas funções policiais, mesmo em tempos de paz, só podem ser julgados por tribunais militares. A Constituição de 1988 considera crimes militares aqueles que estão contemplados pelo Código Penal Militar, consolidando assim a validade do decreto de Lei de 21 de outubro de 1969. No artigo art. V-LXI da Constituição de 1988, podemos ler « ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei ».

A definição de crime militar, por sua vez, é bastante ampla sendo virtualmente capaz de indiciar quase todo o tipo de crime, inclusive aqueles cometidos contra ou por civis. Tal situação implica em foro privilegiado para aqueles que usam a farda. Nos dias de hoje, segundo a legislação vigente, a possibilidade de um policial militar ser indiciado e julgado por autoridades civis é virtualmente inexistente. Um exemplo emblemático desta situação de exceção aconteceu por conta do massacre contra os Sem Terra em Eldorado dos Carajás. Apenas sob pressão de orgãos internacionais (OEA principalmente) o governo conseguiu, em 1996, mobilizar apoio suficiente para a criação de uma lei que pudesse levar à julgamento em tribunais civis os crimes de assassinato doloso perpetrado por polícias militares em função de policiamento. Trata-se da Lei de n°9299, que incide sobre o decreto de 1969 (O Código Penal Militar). Todavia, leve-se em conta que militares federais estão excluídos dessa Lei, graças ao Projeto de Lei n°314. Ainda assim, segundo a Lei n°9299 aprovada em 9 de maio de 1996, a investigação criminal continua a cargo dos militares. Neste caso, PMs estaduais que cometam assassinato doloso contra civis no exercício de funções policiais, mesmo passíveis de serem julgados por tribunais civis, são investigados por colegas de farda. Há de se ressaltar que outros crimes muito mais comuns como agressão, abuso de poder, prevaricação, danos ao patrimonio, etc, continuam sob a alçada do Tribunal Militar e do CPM. Algo em franco desacordo com o artigo 144 §5° da atual Constituição, uma vez que ele estipula que crimes civis devem ser investigados pela Polícia Civil. Os militares federais que cometem os crimes de assassinato doloso em exercício de funções policiais, por sua vez, continuam sendo julgados por tribunais militares. Algo cuja gravidade salta aos olhos haja visto o Decreto-Lei n°3867 de 24 de agosto de 2001, que confere poder de polícia para as Forças Armadas em ações ostensivas de segurança pública, algo muito em voga nas ocupações de morros no Rio de Janeiro, por exemplo.

Os crimes militares também englobam crimes praticados contra militares ou contra os interesses da instituição. Assim, de acordo com a legislação vigente, civis podem ser julgados por tribunais militares em casos de crimes cometidos em área de jurisdição militar ou, mais genericamente, crimes que estejam sob a Legislação Militar, que como vimos acima é bastante ampla. Esses delitos vão desde roubo de material em área militar (roubo de madeira ou material de construção), trânsito não autorizado, até crimes de subversão da ordem, ou os chamados crimes políticos.

O artigo 109-IV da Constituição diz que compete aos juízes federais processar e julgar crimes políticos. Contudo, não há no Brasil legislação sobre eles. Diante disso, a Lei de Segurança Nacional (14 de dezembro de 1983, aprovada no final do governo do general Figueiredo), que é formalização jurídica da Doutrina de Segurança Nacional (pela qual o ex-presidente Lula foi mantido preso por 31 dias em 1980) termina por cobri-los e os violadores permanecem sendo julgados por Tribunal Federal Militar. Situação única em regimes democráticos, excetuando-se casos extremos como os de Terrorismo, por exemplo.

Poderia-se afirmar que o famosos Patriot Act de 2001, promulgado pelo congresso norte-americano após os controversos eventos de 11 de setembro de 2001, durante a presidência G.W. Bush, inauguraria a era da exceção em nível global, atingindo mesmo democracias vistas como consolidadas [ Cf. Agamben, « O estado de exceção »], ao alargar consideravelmente a possibilidade de intervenção militar na vida civil, tornando possível um governo em permanente estado de sítio. Contudo, se considerarmos a Constituição de 1988, apesar dos avanços sociais ali obtidos, veremos que a exceção, no caso brasileiro, já está no próprio texto da Lei. Se não bastasse os Artigos e Projetos citados acima. O artigo 142 diz que as Forças Armadas « destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem ». Não se trata, ao meu ver, de um dispositivo de emergência , muito comum nas constituições liberais desde os tempos da Revolução Francesa (o estado de sítio, estado de exceção, estado marcial , etc…). O caso parece outro. A julgar pelo o texto da Constituição de 1988 as Forças Armadas estão posicionadas no papel de garantidoras dos poderes da República, sem elas, ou sem sua anuência, o Judiciário, o Legislativo e o Executivo simplesmente não podem funcionar.

 

O reverso da repressão: post-scriptum à ideologia do controle

Recentemente falamos da nova repressão do Estado, da caça aos Black Blocs e da ampliação das formas de controle sobre todos os manifestantes, o que ficara evidente com a determinação de fichar todo e qualquer mascarado nos protestos de 7 de setembro. Mas temos que falar também da outra face desse baile de máscaras. Afinal, o que explica que, ao mesmo tempo em que essa repressão toma corpo, tenhamos visto surgir, um dia antes dos protestos, as mais estranhas manifestações de “apoio” aos “mascarados”? Financiado por cubocards, Caetano Veloso fez um apelo singelo junto ao Mídia Ninja, e tirou fotos encapuzado. Em outro vídeo, lançado por sub-celebridades com o título de “Força da Nação”, brancos de branco se fantasiam de Guy Fawkes ao som de um jingle de estilo publicitário. A mensagem de todos era clara: de máscara no rosto, vamos todos para a rua no 7 de setembro para “mudar esse país”. O que motiva esse apoio das vozes do status quo? A mão que bate, também acaricia?

 

Então quer dizer que o senhor apoia o movimento das ruas? Aham....

Então quer dizer que o senhor Caetano apoia o movimento das ruas? Aham….

 

Acontece que nem só de repressão vive a dominação. Vemos aí as duas faces do poder, que pode ser negativo ou positivo, reprimir a liberdade ou produzir a servidão. Em Maio de 68 um pequeno cartaz, perdido em meio a slogans mais “descolados”, avisava: “Vigilância: os deturpadores estão entre nós”. O aviso valia antes de 68 e vale ainda hoje. Toda mobilização popular que traz a possibilidade de um mundo mais justo deve enfrentar dois inimigos: de um lado, a repressão violenta, e de outro, a deturpação de seus interesses.

Como funciona a deturpação? Grupos conservadores – ou seja, grupos cujo objetivo é manter a desigualdade – se apropriam de símbolos dos movimentos de contestação, propõem falsas mudanças e atacam bodes expiatórios. O caso extremo e mais conhecido é, sem duvida, o nazismo. O partido de Hitler se apropriou do léxico socialista, e desviou-o de sua reivindicação anticapitalista e internacionalista, culpando os judeus pela desigualdade e promovendo o nacionalismo militarista que culminou na Segunda Guerra.

Mas, para além desse caso extremo, a mesma disputa se repete a cada explosão popular. É essa a luta que estamos travando desde junho. Todos se lembram como a mídia teve de alterar sua posição ao longo das jornadas de junho. Inicialmente clamava, como de costume, pela repressão. Quando se tornou claro que a repressão não poderia suprimir a revolta, lançou-se mão da deturpação. O meia culpa de Arnaldo Jabor foi o exemplo mais claro. Ao mudar de posição quanto à repressão, o fantoche do “Instituto Millenium” tentou impor qual deveria ser a pauta de reivindicações do povo que estava na rua. Inventou-se, então, uma falsa mudança: derrubar a PEC37, “a lei da impunidade”. Embora se tratasse apenas de uma regulamentação técnica das atribuições do Ministério Público e da Polícia Federal, não esclarecida na constituição de 1988, ela foi vendida como o emblema da “luta contra a corrupção”. Quando derrubada, foi alardeada pelo cartel midiático como uma grande “mudança”. Mas como derrubar uma emenda constitucional pode ser considerado uma mudança? Se não se aprova uma emenda, a constituição continua a mesma; logo, tudo fica como era antes! A falácia da “PEC37” é um exemplo quase didático de deturpação, de como “mudar tudo para que tudo fique como está”.

Mas se a PEC37 conseguiu atingir as ruas, isso não se deveu apenas ao cartel midiático. Deveu-se, sobretudo, ao roubo de símbolos e métodos do movimento de contestação. Quem não se lembra do vídeo das “5 causas”, apresentado como produzido pelo Anonymous (e depois desmentido por seu canal no Youtube)? O Anonymous tem se tornado a ponta de lança da deturpação. Por apregoar a descentralização e o anonimato, o Anonymous se tornou presa das mais freqüentes usurpações. A última delas ocorreu ontem: “o maior protesto da história do Brasil”. O protesto convocado para o 7 de Setembro possuía uma pauta muito semelhante àquela das “5 causas”: elencava uma série de “projetos” (PECs e PLs), com um linguajar técnico que dá aparência de seriedade (como no programa eleitoral de qualquer político medíocre!), e que não tocam em nada a vida cotidiana da população. Não se trata de questões que emergem do cotidiano, como a luta pelo transporte público que motivou os protestos de junho. A redução da tarifa toca muito concretamente a vida de cada um, e graças aos protestos convocados pelo MPL, no dia 19 de junho todos os habitantes das metrópoles sentiram em seus bolsos o efeito da mobilização popular. Além disso, a pauta do “maior protesto da história” não fazia nenhuma referência à desigualdade social que reina nesse país há séculos. Ao invés disso, ataca os “mensaleiros” e a “corrupção”, como se achássemos aí a verdadeira razão dos problemas sociais no Brasil.

A “corrupção” é hoje a bandeira da falsa luta. Originalmente uma bandeira da esquerda, ela também foi deturpada pela reação conservadora. Tornou-se hoje um modo de ocultar os verdadeiros antagonismos. Dizer que não há dinheiro para a educação e a saúde porque há políticos demais, ou porque esses políticos gastam o dinheiro público com seus altos salários e auxílios, é uma forma de desviar nossa atenção da verdadeira corrupção do Estado: aquela de servir aos grandes interesses econômicos e privatistas em detrimento do bem estar da população. Se os direitos básicos não são garantidos, isso se deve à privatização desses direitos, que foram entregues ao setor privado para especulação e lucro. Nesse sentido, a luta contra as máfias do transporte é uma luta muito mais eficaz contra a corrupção. E o massacre do Pinheirinho, um exemplo mil vezes mais revoltante de corrupção do que qualquer “escândalo” parlamentar.

Repressão e deturpação são assim as duas faces de uma mesma moeda e, mais uma vez, andam juntas para sufocar a luta anticapitalista. Mas a julgar pelos acontecimentos de 7 de Setembro, não estão conseguindo. Não é sempre que a história se repete como farsa. O “maior protesto da história do Brasil”, tentativa de simulacro conservador das jornadas de junho – estas sim a maior onda de protestos da historia do país – não aconteceu. E em oposição aos mascarados de branco e aos mascarados embandeirados, os brasileiros “com orgulho” e “sem violência” que formam o tímido exército da deturpação, impuseram-se os mascarados de preto, aqueles caçados pela repressão, com antipatriotas que interromperam os desfiles militares, antinacionalistas que queimaram bandeiras, anticapitalistas que atacaram os símbolos do capital financeiro e da mídia.

“Eu errei”. A meia culpa da mídia.

“Eu errei”. Eis um belo subterfúgio, uma grande aposta na facilidade de manipulação da memória alheia.

13 de junho de 2013: Depois de três protestos em São Paulo contra o aumento das tarifas do transporte público, caracterizados seguidamente na grande mídia como ações de “vândalos, baderneiros, rebeldes de classe média sem causa” etc, milhares de pessoas saem novamenente às ruas da capital paulistana para protestar pela contra o aumento de R$0,20 nas tarifas. Imaginando estarem protegidos pela opinião pública que, afinal de contas, eles próprios vêm historicamente pretendendo manipular em favor de seus interesses, grandes veículos de imprensa armaram o circo em meio aos manifestantes, buscando talvez um melhor ângulo para fotografar e filmar os “atos de vandalismo, baderna, etc” dos últimos. Deste ímpeto à desligitimação dos manifestantes, alguns fatos foram, ao que parece, ilustrativos:

Em um programa ao vivo sobre casos de polícia, transmitido em simultâneo à manifestação, o âncora lança uma enquete cínica aos telespectadores: “Você é a favor de protesto com baderna?” O resultado deixou o âncora em uma das saias justas mais ridículas da história recente da TV brasileira – a maioria respondeu que sim, é a favor de protesto com baderna. A saída usada pelo jornalista em questão: um “eu errei” velado, tão cínico quanto a enquete, e encoberto por um ufanismo nacionalista dirigido aos manifestantes que, certamente, não estavam fazendo aquela baderna pelos mesmos motivos que talvez levassem o jornalista à rua, ou – o que é mais provável – a um jantar com autoridades.

Manifestação com baderna? Sim, oras.

Manifestação com baderna? Sim, oras. (clique na imagem para ver o video)

 Ao longo da manifestação, multiplicavam-se os relatos da repressão violenta da polícia sobre os manifestantes, sob orientação direta do governador do estado, o qual dias antes havia caracterizado as manifestações como “casos de polícia”, igualzinho fizeram o programa de TV acima e editoriais de jornais de grande circulação. Como cães de guarda liberados de suas focinheiras, os policiais aproveitaram a deixa e descarregaram balas de borracha, sprays de pimenta, gás lacrimogêneo, entre outros brinquedos de cachorro bravo, sobre quem quer que estivesse pela frente. Numa dessas, aliás, em várias dessas, os alvos foram funcionários daqueles mesmos jornais que, dias antes, opunham os manifestantes – “vândalos e baderneiros” – aos policiais – “heróis da ordem pública”. Rapidamente os “vândalos e baderneiros” se tornaram heróis, e os antes “heróis” voltaram a ser só polícia mesmo.

 Por último, no mesmo dia, um pouco mais à noite (portanto, um pouco atrasado em relação aos acontecimentos do dia), o Jornal Nacional, programa de notícias da maior emissora de TV brasileira, abre espaço pra um discurso do guru intelectual das nossas classes dominantes e anencéfalas, Arnaldo Jabor. Alheio ao que se passava nas ruas, em 1 minuto e meio o orador da emissora diz exatamente tudo aquilo que se esperava sair dele:

 “A grande maioria dos manifestantes no Movimento Passe Livre, são filhos de classe média, isso é visível. Ali, não haviam pobres que precisassem daqueles vinténs, não. Os mais pobres, ali, eram os policiais apedrejados, ameaçados com coquetéis molotov, que ganham muito mal. No fundo, tudo é uma imensa ignorância política. É burrice misturada a um rancor sem rumo.” Etc etc etc

Se tivesse dito isso um dia antes poderia fazer como seus colegas, editores da Folha de São Paulo, ou o Estadão: fingir que nunca disse nada e confiar no esquecimento. Como não foi este o caso, lançou mão de um conhecido recurso: “Eu errei”.

Mais de dois meses depois, em meio ao rebuliço gerado pela vinda de médicos estrangeiros, em especial os cubanos, para o Brasil, uma jornalista do Rio Grande do Norte publica o seguinte comentário em seu perfil na rede social:

 “Me perdoem se for preconceito, mas essas medicas cubanas tem uma Cara de empregada domestica. Será que São medicas Mesmo??? Afe que terrível. Medico, geralmente, tem postura, tem cara de medico, se impõe a partir da aparência….. Coitada da nossa população. Será que eles entendem de dengue? E febre amarela? Deus proteja O nosso Povo !”

(a jornalista Micheline Borges acaba de mostrar que o “absurdo” caricaturado em forma de comédia neste vídeo é muito mais real do que a gente pode imaginar)

Micheline Borges, a jornalista aí de cima, é um peixe muito menor do que seus colegas de profissão forçados a se desculpar pelo que disseram sobre as manifestações de junho, e talvez nunca ouvíssemos falar desta figura desprezível não fosse pelo seu igualmente desprezível comentário. Porém, a repercussão inesperada deste último obrigou-a a fazer uso do bom e velho “eu errei”.

Por último mas não menos importante, na edição digital do dia 31 de agosto de 2013, o jornal O Globo publicou um texto no qual faz uma espécie de mea culpa pelo apoio ao golpe militar de 1964. O texto, escrito por uma necessidade dupla do jornal (o lançamento de um certo Projeto Memória, que ganharia ares de fajuto caso não memorasse este fato, e as recentes manifestações, que atingiram de maneira particular a empresa de comunicação da família Marinho com o mote “a verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”), procura ao mesmo tempo assumir um fato já amplamente conhecido e justificar o “erro”, dando a impressão de que, à época, não teria tido outra escolha a não ser apoiar o golpe.

Não se trata de um procedimento exclusivo da corporação: nos três outros casos mencionados acima ocorreu exatamente o mesmo. Da mesma forma, em todos eles algumas coisas não ficaram explicadas.

Datena e o programa de TV que apresenta não deixaram explícitos os motivos que os levaram a retratar as manifestações como casos de polícia – isso dá audiência, e agrada seus anunciantes. Aparentemente, seus telespectadores não pensavam o mesmo, e o “erro” aí teria sido insistir na posição anterior. Daí o “eu errei”.

Jabor é, além de comentarista do JN, um conhecido representante de um certo Instituto Millenium, uma espécie de centro de difusão de ideias liberais financiado por algumas pessoas e grupos empresariais de bastante poder no Brasil (Grupo Abril, Gerdau, jornal Estadão, etc). Como tal, usa o espaço que a emissora o concede para pôr a publico algumas das ideias defendidas pelos seus colegas de instituto. Não à toa, ao reconhecer que “errou”, não deixou de frisar a opinião de que as manifestações deveriam se voltar “ao que realmente importa”. Ou seja, ao que realmente importa ao Grupo Abril, à Gerdau, ao Estadão, etc, e 20 centavos a mais na passagem do ônibus de fato não cumpre este requisito.

Micheline Borges é uma jornalista de classe média, pele branca, cabelos loiros, de certa forma estudada…gente de boa família. Isso de maneira alguma justifica seu comentário, mas ajuda a explicá-lo. Em uma sociedade predominantemente negra e “com cara de doméstica”, mas onde gente como a dona Micheline detém uma série de prerrogativas sociais fundadas no histórico de exploração desta mesma gente “com cara de doméstica”, a possibilidade de ascenção social desta gente “com cara de doméstica” representa um grave perigo à ordem social, que mantém gente como a jornalista potiguar num pedestal sobre toda essa gente “com cara de doméstica”. Seu pedido de desculpas fez apenas reiterar o que havia dito anteriormente: “esta é minha opinião, vocês devem respeitá-la”.

A Globo…bom, a Globo tentou fazer do erro um não-erro. Considerou errado apoiar o golpe, mas não lucrar bilhões com este apoio. Defendeu a democracia como “valor absoluto”, mas seu monopólio sobre os meios de comunicação não é exatamente democrático. Disse que errou, mas que foi levada ao erro. Enfim, como disse alguém em outro blog, fez um “meia culpa”.

Nada contra assumir um erro, muito pelo contrário. A questão é como e por qual motivo isso é feito – como um real reconhecimento de uma opinião ou de uma atitude errada ou como forma de manipular a memória alheia em seu favor e de dissimular objetivos, sem precisar tocar em nenhum ponto fundamental do “erro”. Estes quatro casos são exemplares desta segunda via, mas não seria de se esperar coisa diferente. Afinal, é possível assumir como “errada” uma posição perfeitamente coerente com os interesses daquele que “errou”?

Independência e morte! Violenta é nossa história.

Diversos países do mundo têm sua simbologia cívica marcada pela violência. As datas nacionais muitas vezes remetem a revoluções, como é o caso da França, ou a campanhas militares de Independência, como acontece em quase todos os países que um dia foram dominados por potências europeias. Aqui também celebramos a independência, mas todo o imaginário construído sobre ela, a começar pela escolha da data, é uma negação da violência. Sete de setembro de 1822 representa uma declaração de um príncipe, diante de alguns guardas, à beira de um riacho. O quadro de Pedro Américo, datado de 1888, consolida certa visão da Independência cuja glória é ter sido “ordeira”, como aliás tudo na história do Brasil que nos contam.

Pedro Américo - Independência ou Morte. Por não dizer quase nada sobre o que foi o processo de Independência, esta imagem diz muito sobre o que pretendiam os que escreveram essa história

Pedro Américo – Independência ou Morte. Por não dizer quase nada sobre o que foi o processo de Independência, esta imagem diz muito sobre o que pretendiam os que escreveram essa história

Este imaginário, que começou a ser construído já durante o processo de Independência, encobre tanto a violência quanto a participação de amplos setores da população nos acontecimentos políticos do período. Poucos sabem, mas a Independência do Brasil foi um processo violento, que envolveu de diversas maneiras as classes populares, principalmente nas guerras civis ocorridas na Bahia, Piauí, Maranhão e Pará.

Exemplar quanto a isso é o levante de Muaná, na Ilha de Marajó, que estourou a 28 de maio de 1823. Com participação maciça de indígenas e negros, a revolta exigia não apenas a Independência, como também não ser mais o povo “governado por brancos”. Preocupante para as classes dominantes, fosse a parte favorável ou aquela contrária à separação do Brasil, o levante foi rapidamente sufocado.

Também no Pará, em outubro de 1823, um movimento contra os portugueses levou a uma série de saques a estabelecimentos e à tentativa de tomada do poder por grupos populares. Como punição, cinco pessoas foram executadas sumariamente e cerca de 400 foram presas. Na noite de 19 de outubro a população tentou libertar os presos da cadeia, o que levou à transferência de 256 deles para o porão de uma embarcação militar, por ordem de um mercenário inglês contratado por d. Pedro I para forçar a “adesão” do Pará à independência. O porão era mal ventilado, não havia água potável e estava superlotado, levando as pessoas a ao desespero. Soldados dispararam contra a multidão de presos, levando às primeiras mortes, não apenas por ferimentos a bala, como também por serem as pessoas pisoteadas. Havia uma nuvem de cal virgem, que não se sabe se foi jogada por soldados ou se já estava no chão do porão, levantando-se o pó com o tumulto. Durante a noite do dia 21, a única abertura que servia à entrada de ar foi fechada. No dia seguinte, dos 256 presos, apenas 4 saíram vivos. Somando-se aos cinco executados sumariamente, outros 252 acusados de tentar levar o processo de independência para um outro caminho estavam mortos.

A guerra civil nesta e em outras províncias durou de um a dois anos, mobilizando amplos setores da sociedade. Para o regime que se estabeleceu com a independência, porém, interessava uma imagem pacífica do processo. Os desfiles e as festas de 7 de setembro já ocorriam no Primeiro Reinado e se impuseram com mais força após 1831, com a abdicação de d. Pedro I, pois até então a data mais celebrada pelo Estado era a de seu aniversário. Celebração de um patriotismo bem-comportado, a data foi, por vezes, apropriada por setores populares que pretendiam (assim como os rebeldes mortos no Pará) dar outro destino ao processo de Independência. Ameaças de grandes revoltas populares que se aproveitassem do ambiente cívico de 7 de setembro eram bastante comuns. Em Mato Grosso, onde em maio de 1834 havia ocorrido um movimento político violento, a festa e o desfile de 7 de setembro foram cancelados por uma ordem do governo publicada em 21 de agosto. Em nome da “pública tranquilidade”, afirma-se que serão “considerados culpados todos aqueles que largarem de seus trabalhos” para se manifestar naquela data.

O temor não era uma peculiaridade local. No Rio de Janeiro, então capital do Brasil, o 7 de setembro de 1831 foi marcado por boatos de que os liberais exaltados pretendiam aproveitar-se da data para um levante. Os exaltados eram um grupo político com forte base popular, que tinha uma pauta radical para a transformação da sociedade brasileira, defendendo o voto universal (inclusive feminino, que não existia sequer em outros países), a reforma agrária (com o fim do latifúndio) e medidas contra a escravidão. Quatro dias antes da festa, um artigo publicado no Diário do Rio de Janeiro conclamava os “amigos da pátria” a atacar violentamente os “anarquistas”, como eram chamados os exaltados, caso estes se manifestassem no 7 de setembro:

Hoje ninguém deve dormir. […] Venham eles; não os tememos. Se a Pátria tem inimigos, tem ainda mais amigos; podemos contar com dez mil espingardas; e baste que cada um das janelas dê o seu tirinho, não chega uma perna para cada espingarda; temos muita telha pelos telhados para escovar-lhes as cabeças; e muitos honrados Militares, que lá os irão buscar ao Campo se aí se quisessem acantonar. Vamos já decidir este negócio, e viva quem vencer. Os tais de faca e punhal poderão assassinar a alguém; mas estamos firmes, e temos jurado, que por uma vítima da Pátria hão de ser sacrificados cem anarquistas; nós os conhecemos. O Governo não alegue depois ignorância.

O discurso de ódio aos ditos “anarquistas” legitimava frequentemente a perseguição feroz do governo aos exaltados, que tiveram inclusive sua imprensa silenciada. O Estado reprimiu e fechou o caminho do diálogo, não sendo um acaso o fato de que alguns anos depois a violência se tornou generalizada, com grandes revoluções armadas, muitas delas de caráter popular, atravessando o país. Os acontecimentos sangrentos ocorridos no Pará em 1823 se repetiriam de forma mais grave na repressão à Cabanagem, quando mais de 2 mil pessoas morreram em navios prisões semelhantes àquele, enquanto aguardavam julgamento. Muitos sequer tinham outra acusação que não a de serem “cabanos” – ou seja, pobres indígenas ou negros.

Décadas e mais décadas de violência do Estado contra sua própria população foram mais que suficientes para mostrar que o 7 de setembro nada podia oferecer a quem luta por um mundo mais livre e igual. Em períodos de militarização da sociedade e, ainda mais, nos de ditaduras, a data serviu para propagar uma mitologia nacional que legitima a violência estatal e propaga valores contrários à igualdade e à liberdade, como a xenofobia e o militarismo.

Que a data sirva para lembrar os mortos de 1823, os perseguidos de 1831 e todos aqueles que o Estado brasileiro não apenas matou, mas excluiu de sua história, para celebrar um ato inofensivo de um príncipe à beira de um rio. Ao contrário daquela cena, reconhecidamente inventada, de d. Pedro sobre um cavalo erguendo sua espada, a história deste Estado nada tem de inofensiva.

Digam o que disserem os livros deles, violenta é nossa história.

A ideologia do controle

Há apenas alguns dias o Baderna Midiática difundiu um vídeo intitulado “Severamente Punidos” no qual antecipava as consequências que se poderiam esperar da intensa campanha midiática contra os Black Blocs. O paralelo com o que acontecera em 2001 em Gênova servia de alerta: a apresentação dos Black Blocs como usurpadores violentos das manifestações, como vândalos incontroláveis, preparava o campo para uma repressão desmesurada, com o desrespeito de normas legais e o uso abusivo da violência policial. E, mais importante ainda, essa repressão não se limitaria aos vilões declarados, mas abrangeria todas as práticas de contestação, “pacíficas” ou não. Um massacre midiático antecipa sempre um massacre real, dizíamos. Esse massacre já começou.

A prisão dos administradores da página do Black Bloc RJ foi feito de maneira autoritária e ilegal por par parte do Departamento de Repressão a Crimes Informáticos (DRCI) – mas que pelo modo com que vem agindo merece guardar apenas a primeira parte do nome. Como pode ser considerado legal que pessoas que não foram flagradas cometendo nenhum “ato de violência” e nenhum “ato de vandalismo” sejam presas em suas próprias casas e imputadas por “formação de quadrilha”? Como se não bastasse o sigilo informático ser quebrado sem justificativa válida, a prisão foi logo completada pelos típicos procedimentos de incriminação da polícia. Os administradores da página são agora apresentados como a encarnação do Mal: não são apenas violentos, mas são também “corruptores de menores”, “pedófilos” e “maconheiros” ! Mas alguém consegue explicar porque a DRCI agiu de maneira tão contundente contra os Black Blocs, apresentando como prova de incriminação uma simples postagem na qual se ensinava a construir um “ouriço”, mas parece não se importar com as diversas páginas e publicações de conteúdo abertamente racista e filo-nazista?

Na verdade, como já havíamos dito, os Black Blocs são apenas o bode expiatório que serve para justificar um aparato repressivo geral. A propaganda do terrorismo e da violência é a ladainha que legitima a ilegalidade do Estado, desde que esse existe. E o Estado do Rio de Janeiro é um Estado de Exceção declarado desde a criação da “Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas”. A Comissão é a prova de que a repressão não se limita aos Black Blocs ou a nenhum outro grupo de “manifestantes violentos”. A recente determinação da “Ceiv” de que todos os “mascarados” serão fichados nas manifestações é provavelmente um dos atos “legais” mais inconstitucionais da história do Brasil pós-ditadura. Trata-se de fichar como criminosos pessoas que não cometeram crime nenhum. Será que ainda temos que lembrar o quanto é hipócrita um Estado que extermina impunemente nas favelas ter a cara de pau de dizer que violência é quebrar vitrines? Não bastando, ainda querem transformar manifestante mascarado em criminoso, pelo simples ato de usar máscaras (ainda estamos na terra do carnaval?). Fica evidente que o objetivo dessa repressão é transformar todo e qualquer manifestante em criminoso pelo simples ato de não se conformar a uma sociedade injusta e desigual.

Black Bloc em manifestação no Rio de Janeiro

Black Bloc em manifestação no Rio de Janeiro

E não nos iludamos sobre a possibilidade de traçar linhas de demarcação entre o bom e o mau protesto. O jornal “O Estado de São Paulo” – ainda mais que o “Globo” e seu falso mea culpa parece ter nostalgia dos tempos em que apoiava a ditadura. Em editorial de ontem , o “Estadão” saúda o autoritarismo da “Ceiv” e sua política de criminalização, por “combater o vandalismo”, ao mesmo passo em que saúda a ação da justiça de São José dos Campos que impediu uma manifestação do Sindicato dos Metalúrgicos de interromper o tráfego na Rodovia Presidente Dutra – ressuscitando o falacioso argumento de que as manifestações “perturbam o tráfego”, quando todos sabem que o trânsito das grandes metrópoles brasileiras não precisa de ajuda para ser perturbado: para isso já basta a espoliação do transporte público levado a cabo pelas diversas máfias dos transportes. Na argumentação do “Estadão”, fica claro como se articula a ideologia do controle. O combate ao vandalismo se conjuga rapidamente ao combate à toda e qualquer mobilização social, mesmo as mais tradicionais, como as sindicais. Nessa ótica, toda forma de reivindicação que ultrapasse o estreito limite da política parlamentar existente – com seus inúmeros resquícios legais da recente ditadura – deve ser “severamente punido”.

Violento é o trabalho: sobre o amor dos pobres à preguiça

“A fome e a miséria são só devidas à preguiça do povo, que ali devia viver na abundancia.

Qual o motivo porque uma mulher, que não tem o que comer no dia seguinte; que mora em um rancho de palha, que não possui mais que uma rede velha e rota, que verte a saúde por todos os poros – rejeita 30$000 por mês para amamentar uma criança, recebendo além do salario um bom tratamento, ao passo que não tem pejo de estender a mão para implorar a caridade publica?

Qual o motivo porque uma rapariga que vive na prostituição rejeita 20$000 mensais para servir de criada grave, e prefere ao ganho certo a nudez e a fome, uma vez que tenha liberdade para viver na devassidão?

E homens robustos-que passam a vida em continua bebedeira, deitados debaixo de miseras palhoças, acordando somente para comerem um pouco de mandioca, porque recusam 30$000 por mês para servirem como criados ou camaradas?

Não será tudo isto negação completa ao trabalho, amor excessivo á preguiça?”

O excerto acima foi tirado de um livro escrito por um comerciante português que viveu no Brasil há cerca de 150 anos. A primeira coisa que percebemos nele é que sempre antes na história deste país o discurso sobre a preguiça dos pobres existiu. Atualizados os valores, as mesmas frases poderiam ser encontradas facilmente na internet hoje.

A segunda coisa é que a pergunta retórica no final do excerto pode ser respondida de maneira diferente daquela esperada pelo autor usando apenas dados fornecidos por ele mesmo. No texto ele informa alguns preços do mercado local. Uma galinha custava 2$500, uma abóbora podia custar 1$000, um bom peixe, 3$000. Ou seja, amamentar filho de rico (podendo comprometer a amamentação do próprio filho) ou trabalhar como criado rendia um salário que dava pra comprar 12 galinhas por mês, ou 30 abóboras, ou 10 peixes. Ser uma “criada grave” (a opção dada à prostituta), permitia comprar 8 galinhas, ou 20 abóboras, ou 6 peixes por mês.

Ora, o próprio autor afirma no trecho citado que é possível para essas pessoas “comer um pouco de mandioca” (provavelmente plantada no próprio terreno) e “passar a vida em continua bebedeira” (graças a trabalhos esporádicos ou à comercialização de uma pequena produção própria) sem ter que se sujeitar a isso.

Então por que diabos alguém em sã consciência se sujeitaria à exploração de sua força de trabalho nessas condições? Por um salário que compra 10 peixes ao mês é que não é. Mas também aí o autor dá a resposta, revelando a mágica que transformou pobres relativamente autônomos em pobres sujeitos a vender sua mão-de-obra:

“Lance o governo um olhar de compaixão para aquele povo, e procure dar-lhe um remédio eficaz à preguiça, ao contrario terá de vê-lo sempre miserável no meio da abundância, a província inabitável. É-lhe necessário um reativo violento!”

Um reativo violento! Forçar os pobres ao trabalho, impedindo a posse de terras para cultivo próprio e punindo violentamente a suposta “vadiagem”: eis a receita mágica aplicada no Brasil e no mundo. Note que nem estamos falando da escravidão, sistema fundado na violência mais brutal e que na primeira metade do século XIX explorava quase metade da população brasileira. Foi o “reativo violento” que tornou o pobre, além de pobre, um sujeito explorado e dependente – e no caso dos escravos, tornou o alforriado um “vadio” para que continuasse sendo violentamente forçado ao trabalho.

O Corpo de Trabalhadores do Pará, criado em 1838, foi um exemplo de “reativo violento” usado no Brasil. Já no texto da lei a inciativa se justificava como solução para os “vadios” – quase sempre indígenas, que viviam do que produziam ou obtinham na floresta. Com essa legislação, em vigor até pelo menos a década de 1870, o Estado podia sequestrar pessoas para o trabalho forçado e conceder sua exploração a particulares. A Cabanagem (1835-1838) havia sido, em boa parte, uma reação a tentativas de efetivar este tipo de exploração. O Corpo de Trabalhadores nunca foi chamado de violento da forma como os cabanos que reagiam a isso foram.

O Corpo de Trabalhadores do Pará, criado em 1838, foi um exemplo de “reativo violento” usado no Brasil. Já no texto da lei a inciativa se justificava como solução para os “vadios” – quase sempre indígenas, que viviam do que produziam ou obtinham na floresta. Com essa legislação, em vigor até pelo menos a década de 1870, o Estado podia sequestrar pessoas para o trabalho forçado e conceder sua exploração a particulares. A Cabanagem (1835-1838) havia sido, em boa parte, uma reação a tentativas de efetivar este tipo de exploração. O Corpo de Trabalhadores nunca foi chamado de violento da forma como os cabanos que reagiam a isso foram.

Pode esquecer aquela edificante estória do contrato entre indivíduos autônomos que trocam livremente dinheiro por força de trabalho. Sem o “reativo violento” dado pelo “governo”, nada de exploração! E isso nosso amigo do século XIX já sabia muito bem. Ele só não podia confessar que o que lhe interessava era a exploração do outro, e não a melhoria de sua situação (ou alguém acha que a situação de uma mulher melhora com 6 peixes por mês em troca de um filho potencialmente subnutrido?). É por isso que o autor tinha que apelar para o moralismo, falando da preguiça, da prostituição e da bebedeira. O moralismo é o argumento preferencial de quem não pode ir fundo na análise da sociedade porque tem interesses inconfessáveis na exploração e opressão dos outros.

Quando alguém grita “vagabundo”, “puta” ou “maconheiro” é muito provável que, mais do que ignorância, estejamos diante da defesa de interesses que não podem dizer seu nome.

Quando clamam por um “reativo violento” contra o “vagabundo”, a “puta” ou o “maconheiro” é muito provável que estejamos diante de uma máscara que encobre a verdadeira face da exploração.

Violento é o capital.

Violento é o trabalho.

Baderna Midiática

Fonte do Excerto: Joaquim Ferreira Moutinho, Notícia sobre a província de Mato Grosso (1869)

Severamente punidos – a mídia demoniza o Black Block

Corpo de Carlo Giuliani, militante assassinado com dois tiros a queima roupa pela polícia de Gênova

Corpo de Carlo Giuliani, militante assassinado com dois tiros a queima roupa pela polícia de Gênova, em 2001. Clique na foto para assistir o video.

O vídeo denuncia a campanha midiática contra o movimento Black Block como uma estratégia para criminalizar os protestos e incentivar a repressão policial. Lembramos aqui que o mesmo aconteceu em Gênova em 2001. A campanha da mídia italiana contra os Black Blocks legitimou a repressão policial que resultou na morte de Carlo Giuliani, assassinado por um policial com dois tiros a queima-roupa durante uma manifestação, e no massacre da escola Diaz, quando uma operação envolvendo mais de 300 policiais deixou 82 feridos, 63 hospitalizados e uma jovem em coma.

Um massacre midiático prepara sempre um massacre real. Violenta é a mídia!

Globo: a verdade é mais dura

Roberto Marinho e o ditador Figueiredo

Roberto Marinho e o ditador Figueiredo

A Globo pediu perdão por ter apoiado o golpe de 1964, mas esqueceu de dizer o quanto ela lucrou com ele. Seu apoio ao regime não foi uma questão de consciência ou de ética resultante de uma má avaliação política. Ela simplesmente ganhou mais concessões e com isso mais poder e dinheiro. Ela não optou torcer por um time que roubou, nem teve uma avaliação errada ao escolher um lado num conflito. Ela fez o que fez para ganhar dinheiro, é claro que com certa coincidência de valores entre ela e o lado escolhido.

Seria mais sincero dizer: “sim, apoiamos o regime militar, sim, a verdade é dura, mas assim é o sistema que defendemos, que é o capitalismo e não a democracia”. Nesse sistema, uns investem no seguro, outros no arriscado. A Globo preferiu investir no seguro para ter um retorno garantido, estável e lucrativo. Seu compromisso é, ainda hoje, com o próprio lucro e não com a democracia. Seu apoio aberto e sistemático à ditadura garantiu a construção de um império midiático. Garantiu também a perpetuação da própria ditadura e vem contribuindo para a preservação de suas piores heranças.

A verdade é ainda mais dura: a Globo cresceu graças a seu apoio à ditadura.

Enquanto houver o monopólio da mídia que a ditadura alimentou não haverá democracia.

20 anos do Massacre de Vigário Geral

20 anos do Massacre de Vigário Geral

20 anos do Massacre de Vigário Geral

Na noite de 29 de agosto de 1993 mais de 50 policiais encapuzados entraram na favela de Vigário Geral para executar seus moradores. “Vingaram” a morte de 4 policiais alguns dias antes atirando em alvos aleatórios, sendo que dos 21 mortos nenhum tinha relação com o crime organizado. Uma família inteira, de sete pessoas, foi assassinada.

45 dos 52 policiais acusados formalmente pelo massacre foram inocentados por falta de provas.

Quem mesmo promove a violência?
Onde mesmo está o “fascismo”?