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Calendário Insurrecional do Brasil

O Brasil foi construído por meios violentos. Em nossa história, já se dizia mais de trezentos anos atrás, “os alicerces assentaram sobre sangue, com sangue se foi amassando e ligando o edifício”. A apropriação da terra se fez e se faz, do século XVI ao XXI, por meio da expulsão, incorporação forçada ou extermínio dos povos indígenas. O mundo do trabalho foi por mais de três séculos dominado pela escravidão, ou seja, pela permanente possibilidade de uso da violência. A unidade política do país foi resultado de negociações e de conflitos sangrentos, com vitórias das forças do Estado sobre movimentos que iam de pequenas agitações de rua a imensas guerras civis, com importante participação popular e um saldo de milhares de mortos. Nossos quase dois séculos como nação independente são uma incessante acumulação de escombros, história de grandes e de pequenas lutas, tragédia de grandes e de pequenos massacres, farsas dos que vivem de apagar os rastros da barbárie para melhor legitimar a civilização que a produz.

Não contamos os eventos sangrentos como glórias do passado. Eles raramente frequentam nossa memória histórica e mesmo nestes casos apenas como acidentes de percurso ou dolorosas mas inevitáveis eliminações de barreiras ao progresso. Aprendemos a ver a história do Brasil como uma linha evolutiva pontuada por eventos supostamente pacíficos. Um “descobrimento” amistoso, uma Independência como “desquite amigável” ou “acordo de elites”, uma proclamação da república à qual o povo assistiu “bestializado”, duas ditaduras implantadas sem resistência imediata e derrubadas sem uma insurreição popular, sendo a oposição aberta ao autoritarismo obra de grupos isolados – “idealistas”, quando não “terroristas”. Avanços nos direitos e na cidadania vêm sempre de cima para baixo: da primeira constituição, oferecida pelo Imperador, à última, fruto de uma abertura política controlada pelo regime autoritário, passando pela Abolição como dádiva de princesa e pelos direitos trabalhistas concedidos pelo Pai dos Pobres. Comportem-se para que o progresso social venha por si mesmo, insurjam-se para que o progresso seja interrompido – esta é a moral da nossa história.

Ocorre que a trajetória encoberta pelo cortejo triunfal do progresso não deixa qualquer perspectiva de paz no futuro. A violência dos poderes públicos e privados não é uma particularidade nossa, mas a consciência tranquila diante dela talvez seja, pois o que mais impressiona em tudo isso é que ainda nos vejamos como um “povo pacífico”. Acostumamo-nos a condenar a menor violência como forma de luta dos oprimidos, mas a toma-la como legítima quando parte dos opressores, por mais exagerada que ela seja. Na mitologia nacional, não somos apenas pacíficos, somos também acomodados, inertes, incapazes para a organização e para a ação política. Por isso a verdadeira Revolução não nos pertence.

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Resistência popular no Pinheirinho, São José dos Campos, SP, 2012

Este discurso, que se construiu junto com a ideia de uma nação brasileira, foi questionado e recolocado em diferentes momentos, sendo 2013 um ano de ruptura nesta tradição. Sob o impacto das grandes manifestações em torno da pauta dos transportes a partir de junho, milhões de brasileiros, sobretudo os mais jovens, irromperam na esfera pública. Para muitos era a primeira oportunidade de um aprendizado político para além dos meios institucionais. Algumas experiências indicaram o potencial de organização autônoma da juventude, caso do próprio Movimento Passe Livre, que vinha de uma trajetória de anos de luta e que desconcertou os políticos tradicionais, incapazes de lidar com uma força política que não se coloca como uma direção. Mas é o caso também das assembleias populares, primeiramente em Belo Horizonte, e das ocupações de câmaras municipais em diversas cidades do país. Outras experiências apontam para a disposição da juventude em enfrentar as mentiras e a força bruta que sustentam a ordem capitalista vigente, o que no plano da luta imediata significou enfrentar a mídia corporativa e o aparelho repressivo estatal, principalmente a Polícia Militar. Uma onda de desobediência atravessa o país, num processo que só aparentemente se esgotou.

Como se verá neste Calendário, essas formas de organização e mobilização têm precedentes importantes. Não é um acaso que o discurso midiático, na tentativa de capturar e deturpar os sentidos da luta popular, se baseou nas imagens de um país acordando e em gritos de “sem violência”. Para eles, a narrativa de uma história pacífica e sem experiências anteriores de organização e luta popular precisava ser restabelecida, depois de ser demolida nas ruas em junho. Tal esforço de manipulação passa pela deslegitimação e criminalização das lutas sociais no Brasil, o que se viu com mais virulência na ofensiva contra os Black Blocs, que contou com bastante adesão nos quadros da esquerda partidária.

Ocorre que nada disso era totalmente novo. “Vândalos”, “bárbaros” e “bandidos” eram alguns dos nomes usados para negar o caráter político da Cabanagem (1835) e da Balaiada (1838), por exemplo. “Agitadores”, “subversivos” e “terroristas” eram os rótulos que a ditadura pós-1964 colocava naqueles que a enfrentavam. A estratégia não é nova: para desmantelar o poder popular, que lhe seja negada a existência como força política e que seja apagada sua história. Feito isso, a brutalidade policial dá conta de sufocar as vozes que vêm das ruas.

Antes que estejamos ainda mais silenciados pela repressão, é preciso lembrar duas coisas. Primeiro, que o povo deste país não acordou em junho porque nunca dormiu, e é por isso que as revoluções, as insurreições e as mobilizações populares como um todo serão lembradas aqui. Segundo, que o slogan “sem violência” só é legítimo se dirigido também, e sobretudo, ao Estado brasileiro, que é o maior algoz de sua população. A brutalidade da polícia não começou em junho. Ela faz parte da rotina de milhões de brasileiros, que vivem constantemente sob um estado de exceção. Por isso, vamos rememorar não apenas as lutas, mas também os massacres. Não só as experiências de organização popular, mas também as chacinas que perpassam ditaduras e “democracias”, como a atual.

Contar a história de um Brasil sonolento e sem violência é uma estratégia dos vencedores do momento, que por sua vez são herdeiros de uma longa tradição de manipulação do passado. Este Calendário Insurrecional do Brasil tem como tarefa romper com a narrativa de um país sem conflitos.

 

“Os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer

Combatemos para que não morram a morte do esquecimento

Combatemos para impedir o inimigo de vencer”

Hino à Rua, 2013

 Baderna Midiática

O Apartheid brasileiro está nu! Sobre os ditos “arrastões” em shoppings

Multiplicam-se nas redes sociais os “rolezinhos” de jovens das periferias para transformar corredores e estacionamentos de shopping centers em bailes funk improvisados.

Os “rolezinhos” são chamados de “invasões” ou “arrastões” pela mídia corporativa.

“Invasão”, no vocabulário da mídia, ocorre sempre que um ou mais pobres e negros se deslocam para um lugar onde “não deveriam estar”, pois numa sociedade segregada há lugares definidos para os diferentes segmentos sociais e raciais.

Já “arrastão” ocorre quando são centenas ou milhares de pobres e negros reunidos onde “não deveriam estar”. Pode ser um shopping ou uma praia de bacana.

Originalmente, “arrastão” era um tipo de crime violento. A estratégia da mídia é a de fazer confundir com assaltos em série a simples reunião de jovens da periferia que, com a criminalização dos bailes funk, decidiu se encontrar nos shoppings e improvisar seus eventos convocados pelo facebook.

Se a rua esta sendo vedada a eles, nada mais natural que achar um novo espaço.

Se quem pede que a rua seja vedada a eles frequenta o shopping, nada mais natural que este novo espaço seja o shopping, onde vão incomodar uma parte dos que devem ser incomodados.

Segregação explícita: próxima moda nos shoppings brasileiros?

Segregação explícita: próxima moda nos shoppings brasileiros?

Com essa atitude de jovens badernistas, o apartheid brasileiro se torna mais visível. Os shoppings daqui já não estão longe de usar aquelas placas “Whites Only” do Sul dos EUA e isso vai ser ainda mais descarado se essa onda de “rolezinhos” ocorrer. Ao mesmo tempo, a violência policial vai se estender para o interior e entorno dos shoppings, como já ocorreu em Vitória e em Itaquera (São Paulo).

A cena é comum em outros espaços, mas de forma alguma no templo dos consumidores endinheirados.

Vitória (ES): a cena brutal é comum em outros espaços, mas de forma alguma no templo dos consumidores endinheirados. Numa sociedade espacialmente segregada entre classes e raças, a aproximação é encarada como invasão de bárbaros

Ou seja, uma derrota, ainda que pequena, da tradição de segregação velada, que esconde e dissimula o confronto, jogando a violência pra periferia.

Só dá pra combater o que é visível.

Que se jogue o apartheid na cara de todos.

Que o confronto seja aberto.

A onda, ao que parece, virá. Se a repressão comer solta como (sempre) promete, é possível que se faça jus ao rótulo de “arrastão” que a mídia quer colar nesses eventos. Dispersar violentamente uma multidão em meio a um templo do consumo teria provavelmente este efeito, afinal trata-se de uma multidão de pessoas formadas como consumidoras sem que tivessem dinheiro para se realizarem como tais.

Neste caso, que ao menos se possa dizer que o fim de ano foi melhor pra muita gente.

Para Falar dos Black Blocs

Não há dia que passe sem que a mídia publique a opinião de mais um intelectual sobre o novo fenômeno das ruas. Para você que não quer ficar de fora, a Baderna Midiática dá a receita de como fazer um típico texto de intelectual midiático “de esquerda” sobre os tão falados black blocs.

Os paralelos históricos são uma ferramenta importante para tentar entender o presente. Mas, com uma pequena dose de má fé ou ignorância, eles também podem ser usados de maneira inversa, para confundir. Como o black bloc é pouco conhecido, uma boa estratégia para desqualificá-lo é dizer que ele é igualzinho a algo que já aconteceu antes. Para uma argumentação mais moderada, recomenda-se compará-lo ao luddismo. Para quem não se lembra, os ludditas foram os quebradores de máquinas que se opuseram à nascente industrialização na Inglaterra no inicio do século XIX. Desde cedo os ludditas entenderam algo que demorou um século e meio para entrar nas cabeças bem pensantes da esquerda ortodoxa: a técnica não é neutra. Mas, apresar disso, os ludditas passaram para o senso comum da esquerda tradicional como exemplo de suma ignorância, pois não teriam entendido que o problema não eram as máquinas em si, mas a exploração capitalista. Da mesma forma, os black blocs, coitadinhos, não entenderam que não adianta quebrar os caixas eletrônicos e as agências bancárias para acabar com o capitalismo. Mas cuidado, essa comparação pode ser perigosa. Os ludditas foram criticados pelo movimento operário posterior porque se limitaram a quebrar máquinas, quando deveriam ter atacado os senhores das máquinas; exigiram a restauração de sua condição anterior de trabalhadores-artesãos, ao invés de questionar sua condição de explorados. É preciso, portanto, ser claro para evitar que a comparação com os ludditas leve a ideias ainda mais radicais – queremos é que os black blocs voltem para casa. A solução é simples. Basta mostrar como os mecanismos do sistema produzem efeitos mais concretos do que o quebra-quebra, e que, logo, é muito mais radical aderir ao sistema do que questioná-lo. Sugestões dos internautas: dizer que “baixar em um ponto a taxa de juros é mais eficaz do que quebrar bancos”, ou que “falta organização política aos black blocs” (por “organização” leia-se: filiação partidária).

A comparação com as Revoluções do passado é salutar. Sabemos bem que a esquerda partidária há muito abandonou toda pretensão revolucionária. Mas ela ainda se vê na obrigação de olhar com bons olhos algumas revoltas de outrora, exemplos dignos do uso da violência. Por conta disso, a esquerda partidária não pode, ao contrario da direita partidária, recusar inteiramente a violência (mas obviamente a violência do Estado não entra nesta conta). É preciso distinguir, então, entre uma violência boa e uma violência má. A principal característica da violência boa, chamada de “violência revolucionária”, é a de ter existido no passado e de não existir mais. Se atual, ela deve necessariamente estar muito longe de nós. Já a característica da violência má é a de estar nas ruas, aqui e agora. Caso tenha duvidas se a violência de um movimento é boa ou não, basta fazer a seguinte pergunta: eu posso tomar parte direta nesse movimento? Se a resposta é “não”, pode falar em “violência revolucionária” sem temor. Assim, pode louvar a violência dos “rebeldes” sírios ou dos resistentes palestinos, sem por isso ter vergonha de desacreditar os black blocs que quebraram a sua agência Bradesco.

Mas, sobretudo, é preciso deixar claro que a violência das Revoluções do passado nada tem a ver com tudo que se passa no presente. Para reforçar esse argumento, você pode insistir no fato de que os sujeitos são outros. A violência de 1917 era fruto da pura união dos explorados operários com os explorados camponeses. Em 1968, os operários se juntaram dessa vez aos estudantes, que, naqueles tempos sim eram revolucionários (“não se fazem mais estudantes como antigamente”, nos dizem os professores que ensinam a esses estudantes!). Para gerar um contraste perfeito, esvazie a subjetividade da violência atual, faça dela uma violência sem sujeito, com o uso de fórmulas repetitivas, tautológicas: “vandalismo de vândalos”, “baderna de baderneiros”. Se achar realmente necessário nomear os sujeitos, a sugestão de um internauta é: aludir a uma aliança entre estudantes baderneiros e criminosos da periferia. Essa alusão tem a vantagem de despertar o medo-classe-média, mas é um pouco forçada e você corre o risco de fazer papel de Bucci.

Para os menos moderados e mais sem vergonhas, recomendamos o paralelo “super-trunfo”: comparar os black blocs aos fascistas italianos. Na falta de argumentos para fundamentar tal comparação (já que esses simplesmente não existem) você sempre pode apelar para a cor da camisa. A analogia é frágil, para dizer o mínimo, mas perante uma plateia de policiais pode colar.

Combate ao autoritarismo e ao monopólio da mídia, apoio a grevistas e feminismo: típicas bandeiras fascistas, não é mesmo?

Combate ao autoritarismo e ao monopólio da mídia, apoio a grevistas e feminismo: típicas bandeiras fascistas, não é mesmo?

Atenção! : desaconselhamos todo e qualquer paralelo com revoltas do passado brasileiro. Nada de falar em balaiada, cabanagem, motim do vintém ou revolta da vacina! Além de não serem chiques como os exemplos europeus, os exemplos tupiniquins podem abalar a ideia de que o povo brasileiro é, por natureza, “pacífico e ordeiro”.

Para aqueles que não gostam do visual retrô e preferem a última moda, nada como evocar o inimigo número 1 da nova ordem mundial: o terrorismo. Nos EUA, o “gigante” do norte, o terrorismo tem feito maravilhas para o avanço do sistema repressivo e de controle da vida dos cidadãos. Aqui no Brasil, ele pode fazer o mesmo. Infelizmente ainda não existem indícios de que os black blocs sejam fundamentalistas, ou mesmo que tenham qualquer religião, e fica difícil apontá-los como braço da Al Qaeda. Mas isso não impede que eles “peguem um avião e joguem no Congresso”, como propôs um senador governista, mais inventivo do que qualquer intelectual.

Já aqueles que preferem o visual clean, nada como a volta do higienismo. E ele está voltando com tudo na esquerda institucional, com suas fórmulas clássicas que parecem não envelhecer. Você pode chamar os black blocs de “parasitas” ou “sanguessugas” que estão se aproveitando das manifestações (para quê, mesmo?) ou qualificá-los de “doença social”, que precisa ser combatida com duros remédios. Sugestão do internauta: “catapora social”, pois é uma doença “epidérmica e superficial” (para dar uma pitada de maringonismo no seu cafezinho)

Poderia ser propaganda neonazista, poderia ser uma capa da Veja, mas não: a fonte é um portal "de esquerda"

Poderia ser propaganda neonazista, poderia ser uma capa da Veja, mas não: a fonte é um portal “de esquerda”

Não se esqueça de lembrar também que o uso das máscaras é prejudicial aos protestos (o link indicado é de uma republicação, pois o original foi tirado do ar). Elas permitem a infiltração de P2s e criminosos. Antes do uso das máscaras a polícia, coitada, não conseguia infiltrar agentes – como se disfarçar sem a máscara do Guy Fawkes, como? E os criminosos, hoje tão abundantes, não tinham vez. Todos sabem, e os índices demonstram, que não havia criminalidade nas grandes metrópoles brasileiras antes de junho de 2013. Você pode ser inclusive o primeiro a dizer que quando os black blocs quebram os caixas eletrônicos não querem manifestar sua posição anticapitalista, mas sim roubar o dinheiro que está ali dentro –só não descobriram como.

Último argumento que não pode faltar: a violência dos black blocs justifica a violência da Policia Militar contra os manifestantes. Trata-se aqui de uma simples inversão de causa e efeito, qualquer um pode fazer. O documentário Com Vandalismo mostra como nos protestos de junho em Fortaleza, manifestantes pacíficos, inicialmente contrários ao “vandalismo”, mudaram de opinião e abandonaram o grito “sem violência” depois de terem sofrido na pele a violência irracional da Policia Militar. O aparecimento de grupos que se valem da tática black bloc é uma resposta à violência com a qual protestos são habitualmente tratados pela polícia que a ditadura nos deixou. Basta lembrar de 13 de junho, quando não se falava em black bloc, e quando a imprensa foi obrigada a admitir que a repressão da manifestação ocorreu sem motivo algum. Portanto, é importante fazer esquecer tudo isso, e fingir que a violência policial começou por causa dos black blocs e não o contrário.

Mais importante de tudo. Não deixe, em nenhum momento, o seu leitor suspeitar que exista relação entre a violência cotidiana nas periferias e a violência das manifestações. Não deixe seu leitor sequer imaginar que o ódio que por vezes os black blocs ostentam pela polícia possa ser em algum grau motivado pelo desprezo desumano e homicida que essa policia ostenta perante uma parte da população. Não deixe, enfim, seu leitor suspeitar que o espancamento do coronel indefeso possa ter algo a ver com as mortes de Amarildo, Douglas, Jean e tantos outros.

Sobre a questão, na Baderna Midiática:

Violência, mas para quê?

A ideologia do controle

O reverso da repressão

Severamente punidos: a mídia demoniza os black blocs

Toda rotina tem sua violência

Quem matamos Amarildo?

Um artigo de Matheus Pichonelli publicado na Carta Capital chama atenção para uma relação que precisa ser estabelecida e debatida, entre o cinema brasileiro recente e a legitimação da violência do Estado. O argumento geral é o de que a plateia que vibrou com as torturas e execuções praticadas em Tropa de Elite autorizou a barbárie que hoje se volta contra ela. O Brasil que aplaudiu de pé o personagem Capitão Nascimento teria optado por negar o papel civilizacional do Estado, pois legitimava a tortura, morte e desaparecimento de muitos, incluindo Amarildo de Souza, assassinado numa UPP durante sessão de choques elétricos e sufocamentos comandada – como no filme – por um oficial do Bope.

Ainda que concordemos com alguns pontos dessa leitura, é preciso questionar outros tantos, retomando assim o intenso debate ocorrido em diversos meios – ligados ao cinema, à militância política, às universidades, etc. – na época do lançamento de Tropa de Elite. O momento atual, em que se discutem mudanças na política de segurança pública e o papel da mídia na criminalização das lutas sociais, impõe esse debate. A presente crítica ao artigo da Carta Capital (que teve o mérito de recolocar a questão) é nossa primeira contribuição nesse sentido. Ela se divide em três partes, sendo a primeira sobre a obra e sua recepção imediata (Por que os aplausos?), a segunda a respeito dos discursos sobre a violência urbana e seus lugares sociais (De onde vêm os aplausos?), a terceira sobre os pressupostos culturais que podem esvaziar uma crítica à violência estatal (Para quem são os aplausos?). A depender dos rumos deste debate, outros textos poderão ser elaborados num segundo momento.

Quem matamos Amarildo? Reflexões sobre cinema e violência no Brasil

 

Parte I – Por que os aplausos?

Tropa de Elite foi um fenômeno cinematográfico único no Brasil das últimas décadas. Sucesso absoluto de mercado (inclusive pirata), de crítica e de público, o filme invadiu a linguagem do cotidiano com os jargões do Capitão Nascimento, gerou intensos debates nos mais variados meios e polarizou posições políticas a respeito da violência estatal, dos direitos humanos, da guerra às drogas e de outros temas. Central naquele contexto era a discussão sobre as intencionalidades envolvidas na produção. Deixando de lado as visões ingênuas de que se tratava de um “retrato fiel e neutro da realidade” ou de “uma produção artística sem compromisso com seu contexto social” restavam duas posições diametralmente opostas: tropa de Elite era uma crítica ou uma legitimação dos métodos de tortura e extermínio nas favelas do Brasil.

Tanto na época quanto hoje – e apesar do que se possa dizer sobre Tropa de Elite 2 (2010) – a posição daqueles de nós que se envolveram em tal debate foi a de que o público que aplaudiu a tortura podia ter (e de fato tinha) muitos defeitos, mas não o de ser incapaz de compreender a obra. O que tinham diante dos olhos era um filme cuidadosamente construído para que a violência estatal (incluindo a tortura e o extermínio) gerassem aplausos.

Todas as opções estéticas e narrativas de Tropa de Elite se encaminham para o reconhecimento de uma figura de herói salvador e redentor no Capitão Nascimento e de uma instituição infalível e incorruptível no Bope. A narrativa a partir de um drama doméstico do narrador onisciente, ao estilo dos filmes policiais norte-americanos, produz uma identificação do espectador que poderia dar margem à crítica desde que em algum momento seus valores inabaláveis ou sua infalibilidade fossem colocadas em questão. Não é o caso, pois os discursos que se contrapõem ao do “herói” são tão toscos que levam à aversão imediata do expectador. No filme, o Bope é a única instituição não dominada pela corrupção, o que vale também para cada um de seus agentes. O “sistema” envolve moradores das favelas, policiais convencionais, universitários, todos estereotipados e estigmatizados como agentes da violência, sendo a “missão” do Bope “corrigir”, pela tortura e extermínio, os males que essas pessoas causam.

Não por acaso, no auge do sucesso de Tropa de Elite um coronel da PM se sentiu autorizado a definir sua instituição como “inseticida social”, pois a desumanização do inimigo estava garantida pela eficácia do discurso de Padilha (e evidentemente, por tudo que veio antes nesse sentido, especialmente na televisão). Naquela ocasião, disse o mesmo oficial que “quem não gosta do caveirão gosta de maconha, quem não gosta do caveirão, gosta de cocaína”. Baseando-se em Tropa de Elite, e não no cotidiano dos morros, seu discurso é verdadeiro: a reação à violência estatal só pode partir de quem tem interesses – como traficante, usuário ou policial corrupto – no narcotráfico. A constatação da relação entre mercado de drogas ilícitas e violência, que poderia servir para questionar a política de guerra às drogas, apenas a reforça. O filme se presta integralmente à defesa da indústria da morte garantida pela criminalização.

Como afirma outro texto que dá sequência a este debate (escrito por Antônio David e publicado no Viomundo), a capa da revista Veja que cristalizou a imagem do Capitão Nascimento como “primeiro super-herói brasileiro” incentiva uma política aberta de tortura e extermínio, num discurso que abusa de eufemismos (como chamar o personagem de “implacável com os bandidos”). Porém, boa parte do que diz aquele semanário sensacionalista encontra sustentação na própria narrativa do filme (sobretudo o primeiro, ainda que a capa tenha vindo na esteira do segundo).

Se uma revista sem nenhuma seriedade jornalística ou compromisso com a democracia criou um super-herói torturador de pobres e negros, seu trabalho foi facilitado por Padilha, que forneceu todas as peças e uma narrativa convincente para essa nova figura do Panteão Nacional – que, aliás, já contava com personagens históricos que cumpriram papéis semelhantes. (Um parênteses: Duque de Caxias, cultuado até hoje como patrono do Exército Brasileiro, se apresentava como “pacificador” diante dos “bandidos” do sertão do Maranhão, que nada mais eram que camponeses rebelados contra as arbitrariedades e o racismo do Estado. Tal como o Capitão Nascimento, ele os exterminou de forma “implacável” e pode legitimamente ser reconhecido como seu precursor.)

O discurso de Tropa de Elite, apropriado e adaptado (mas não inventado) pela mídia conservadora legitimou, como sabemos, as operações de guerra e a criação das UPPs no Rio de Janeiro. Os brasileiros se acostumaram a remakes de Tropa de Elite, com direito a rajadas disparadas de helicóptero e a defesas da tortura como método. Os aplausos continuam, pois o filme já ensinou que os tiros só atingem “bandidos” (nenhuma vítima executada pelo Capitão Nascimento é, como Amarildo, apenas morador do morro) e que a tortura é infalível e necessária (nenhuma vítima de tortura em Tropa de Elite é, como Amarildo, alguém sem envolvimento com o crime e, portanto, incapaz de revelar algo de “útil”).

Amarildo, a vítima-padrão do Bope, não existe em Tropa de Elite, pois os “homens de preto” são infalíveis e suas vítimas são “bandidos”.

O Caveirão, instrumento-padrão do Bope, também não existe em Tropa de Elite, pois os “homens de preto” são destemidos e não os covardes da vida real.

Tudo isso são opções narrativas e estéticas que tendem a provocar aplausos em um público já envolvido pelo discurso da mídia corporativa, que divide o mundo em “cidadãos de bem” e “bandidos”. Nesse discurso, a decisão sobre a vida e a morte, nas mãos dos “infalíveis” do Bope, tem por critério o caráter bom ou mau do indivíduo e não os cortes de classe e raça que os dados sobre violência no Brasil demonstram fartamente. Ao contrário do que afirma o texto de Carta Capital, ser alvo ou não da violência estatal não é questão de sorte e o fato de o primeiro Tropa de Elite terminar com a arma apontada para a plateia não gera qualquer identificação com quem está na mira. Voltaremos a isso num outro momento.

Não, estas armas não estão apontadas para todos os brasileiros.

Não, estas armas não estão apontadas para todos os brasileiros.

Considerando essas e outras opções, é nítido que Padilha desejou aqueles aplausos, ainda que provavelmente não pudesse prever o quanto seria bem sucedido. Pode ter desejado por convicção ideológica (lembremos que o diretor é colaborador do think tank conservador Instituto Millenium) ou por esses aplausos representarem um maior sucesso para sua mercadoria. Mas é ingenuidade crer que não esperasse que sua narrativa fosse apropriada para uma maior legitimação da violência estatal. É difícil imaginar que um diretor de reconhecida competência e capacidade técnica e artística como é José Padilha (talento reconhecido até por Hollywood, que colocou em suas mãos o novo Robocop) tenha feito tantas opções coerentes sem querer.

Mas o leitor pode perguntar: e Tropa de Elite 2? Ele não nega essa intencionalidade ao mostrar tanto os podres da política de segurança quanto as boas intenções de um crítico dos massacres nas favelas? Sem dúvida há uma mudança de perspectiva e uma narrativa mais complexa nessa sequência, mas o essencial já estava dito e podia ser pressuposto. A complexificação da narrativa vai no sentido de integrar a corrupção política à violência urbana. A legitimidade da violência estatal é pressuposta, o problema está na “corrupção”. Afinal, que dizer da cena em que Mathias, um digno oficial do Bope é assassinado ao tentar cumprir seu dever de policial honesto, torturando um “bandido”? A identificação do público deve ser, mais uma vez, com quem tortura para fazer o bem e que, neste caso, é vítima de quem executa para fazer o mal.

Tropa de Elite 2 de fato é um filme crítico à política de segurança no Brasil, mas trata-se da nossa conhecida crítica moral à corrupção e não da necessária e urgente crítica à violência do Estado contra sua população. De resto, com o primeiro Tropa de Elite, Amarildo já estava na conta do Padilha – como estava na de muitas outras pessoas, mas não na de um genérico “Brasil” como afirma o texto da Carta Capital. Como veremos a seguir, as responsabilidades pela violência estatal neste país não se dividem igualmente entre seus cidadãos.

Churchill, as armas químicas e o Brasil

Em seu novo livro, o escritor Eduardo Galeano documenta uma face menos conhecida de Winston Churchill, tido por herói nacional após liderar a Grã-Bretanha contra a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial. Trata-se de sua defesa do uso de armas químicas, que após as catástrofes que causaram na Europa durante a Primeira Guerra, tiveram seu uso restrito no continente.

Em 1919, ele afirmava: “Não consigo entender tantos melindres sobre o uso do gás. Estou muito a favor do uso do gás venenoso contra as tribos incivilizadas. Isso teria um bom efeito moral e difundiria um terror perdurável.”. Em 1937, quando a perspectiva de uma guerra contra os suprematistas “arianos” da Alemanha estava evidente, Churchill parecia não se diferenciar muito de seus inimigos: “Eu não admito que se tenha feito mal algum aos peles-vermelhas da América, nem aos negros da Austrália, quando uma raça mais forte, uma raça de qualidade, chegou e ocupou seu lugar.” Em ambos os casos, as defesas que Churchill faz de políticas de extermínio têm um alvo tão certo quanto amplo: o mundo não-branco, ou ao menos a parte desse mundo que não se organiza em Estados Nacionais soberanos reconhecidos como “civilizados”.

“Tribos incivilizadas”, “peles-vermelhas”, “negros da Austrália” são nomenclaturas que abarcam, cada uma delas, centenas ou milhares de povos, unificados apenas no vocabulário imperialista, ao lado de “bárbaros”, “selvagens”, “aborígenes”, “povos primitivos”, “raças inferiores”. Algumas dessas palavras caíram em desuso, enquanto outras se tornaram, não por acaso, metáforas para caracterizar – e deslegitimar – as lutas populares em geral. Familiar a todos nós, o termo “índio” foi também criado pelos colonizadores, definindo pessoas que se identificam segundo seus próprios termos. Assim como outros grupos explorados, oprimidos e massacrados pelo imperialismo, esses povos se apropriaram de um termo cunhado pelos opressores e com ele elaboraram uma identidade fruto das experiências de luta e resistência. É nesse sentido que se pode falar de uma luta indígena ou de uma consciência racial negra, por exemplo.

Mas retomemos a fala de Churchill, não para reivindicar a perda de seus status de herói (convenhamos que, independentemente desses discursos, ninguém que comanda um Estado que se impõe mundialmente pela violência mereceria este título), mas para tratar da questão dos armamentos e do extermínio. Como já foi dito, as armas químicas foram em grande parte proibidas na Europa após a Primeira Guerra Mundial e passaram, com toda razão, a ser vistas com horror pela cultura ocidental. No entanto, quanto mais se afastam das formas dominantes de organização dessa “cultura ocidental”, mais as pessoas podem ser alvos desse tipo particularmente terrível de violência sem que o agressor sofra consequências por isso. Países cujas populações se horrorizam diante das armas químicas, como os Estados Unidos, a França e Portugal, seguiram fazendo uso delas na África e na Ásia no pós-1945. O fato de que o napalm e o agente laranja se tornaram alvos de campanhas e mobilizações nos EUA após a Guerra do Vietnã foi excepcional, mas não o uso desses armamentos e de outras formas de extermínio em massa legitimados pela ideologia imperialista expressa por Churchill.

E o Brasil? Houve um massacre com armas químicas e biológicas no Brasil?

Um não, muitos! Eles ocorreram principalmente entre os anos 1960 e 1970, facilitados pela generalização do acesso a esses armamentos (muitos deles usados como agrotóxicos) e também pelo regime ditatorial que permitia um silenciamento mais fácil das vozes dissonantes. Trata-se do envenenamento da água de rios, da transmissão intencional de doenças (por exemplo jogando-se objetos contaminados de aviões), e ainda da utilização de armas que se tornaram tristemente célebres no Vietnã, como o napalm e o agente laranja. Em comum, quase todas as vítimas seriam definidas no vocabulário de Churchill como “tribos incivilizadas”, atacadas “quando uma raça mais forte, uma raça de qualidade, chegou e ocupou seu lugar”.

Em 1980 d. Tomás Baduíno afirmava que “como em quase toda a guerra o fim justifica os meios, nessa já foram usadas todas as armas: os cães, os laços, a Winchester 44, a metralhadora, o napalm, o arsênico, as roupas contaminadas com varíola, […]” além das armas jurídicas e ideológicas. O texto era o prefácio a denúncias sobre o massacre dos Nambikwara, que viviam na região do Guaporé, Mato Grosso, e que foram vítimas de agente laranja lançado por aviões de fazendeiros.

Se em quase todas as guerras os fins justificam os meios, a situação é mais grave no caso desta, de uma sociedade que incorporou profundamente a ideologia imperialista contra povos que considera “selvagens”. Mais grave não só pela brutal desigualdade bélica e tecnológica, que faz com que qualquer conflito se torne facilmente um massacre unilateral, mas também porque a justificação está pronta, está dada para uma população que por séculos interiorizou a ideia de que “índio” não é gente – ou de que é menos gente que os demais.

As amas químicas eram relativamente novas no momento do ataque aos Nambikwara, mas não os massacres ou a ideologia que os legitimam. Antes de contarem com a facilidade das armas de destruição em massa, genocidas do poder púbico ou privado usavam no Brasil outros artifícios para, nas palavras de Churchill, difundir “um terror perdurável” – como amarrar pessoas nas bocas de canhões ou desmembrá-las e espalhar as partes de seus corpos, por exemplo. Percorrendo a documentação oficial do governo de Mato Grosso no século XIX nos deparamos com referências a chacinas de indígenas narradas com o mesmo tom burocrático de quem fala da construção de uma ponte ou da redução de uma taxa de comércio. Que episódios como esses sejam pouco conhecidos e que tenha perdurado uma visão pacífica dos contatos interétnicos no Brasil é fruto da internalização da concepção que fundamentava a frase do estadista britânico. Como afirma Antonio Paulo Graça,,”não se exterminam, por séculos, nações, povos e culturas sem que, de alguma maneira, haja uma instância do imaginário que tolere o crime. Se a sociedade brasileira incorre no genocídio, desde sua fundação, e ainda hoje o reitera, é porque existe no imaginário um foro legitimador”.

Por sua vez, o “foro legitimador” pode se voltar contra aqueles que se têm por “civilizados” em oposição aos “selvagens”, mas que entram em rota de colisão com o Estado e o Capital – poderes estes que legitimamente podem reivindicar a ideologia do extermínio em massa. Vítimas da mesma violência que os índios conheciam há séculos, os guerrilheiros que combateram no Araguaia conheceram talvez antes mesmo dos indígenas brasileiros os horrores do napalm.

O agente laranja foi proibido no Brasil em 1977, mas o governo tentou adquiri-lo para uso como pesticida em 1994. Quanto a isso, importa lembrar que o Brasil é um dos países mais permissivos com relação ao uso de venenos na produção de alimentos.

O agente laranja foi proibido no Brasil em 1977, mas o governo tentou adquiri-lo para uso como pesticida em 1994. Quanto a isso, importa lembrar que o Brasil é um dos países mais permissivos com relação ao uso de venenos na produção de alimentos.

Combater o foro legitimador do extermínio indígena passa, antes de tudo, pelo reconhecimento do direito desses povos a terra e a autonomia na definição das formas como se relacionam com a sociedade nacional. Enquanto subordinarmos os direitos desses povos a interesses de quaisquer tipos, por mais legítimos que possam parecer, não estaremos fazendo mais que perpetuar os horrores feitos nos últimos séculos em nome da “civilização” que os comete.

A diferença entre dizer que os índios da Amazônia devem abrir espaço ao progresso e dizer, como Churchill, que não há mal algum em eliminar “raças inferiores” é uma diferença de tom, não de conteúdo.

O coletivo Baderna Midiática apoia a Mobilização Nacional Indígena e a luta contra a ofensiva ruralista expressa na PEC 215/00, PEC 237/13, PEC 038/99, PL 1610/96 e PLP 227/12.

Leitura recomendada, da qual retiramos muitas das informações acima: Victor Leonardi. Entre árvores e esquecimentos: história social nos sertões do Brasil. Brasília: Paralelo 15/UnB, 1996.

Nota de apoio ao povo Munduruku

Das ruas em revolta, dos mascarados que não se ajoelham perante a repressão que segue, dos negros e negras maloqueiras que reagem contra o racismo, dos renegados que não se envergam na luta contra o capital, das favelas que teimam em não se emudecer ao som da bala, das mulheres que sobejam coragem e dizem não! ao machismo, das trans e homossexuais que resistem com punhos em riste por respeito, de todos os povos e pessoas que gritam em peito aberto pela Liberdade, daqueles que não querem o dia terminado até que caia a última das opressões: o nosso irrestrito apoio e as nossas saudações ao povo Munduruku.

Estamos a postos!

. Que saiam as Forças Armadas do território Munduruku.

. Que parem as pesquisas de EIA na região.

. Que parem as construções de hidrelétricas.

. Que se ouçam os Munduruku e que se respeitem as suas decisões acerca do seu próprio destino

 

ASSINAM:

– Das Lutas – RJ

– Campanha Reaja ou será morta, Reaja ou será morto – BA

– Quilombo Xis – Ação Cultural Comunitária – BA

– Aldeia Maracanã – RJ

– Rio40Caos – RJ

– Laboratório de Direitos Humanos de Manguinhos – RJ

– Jornal O Cidadão da Favela da Maré – RJ

– Justiça Global – RJ

– Rede Universidade Nômade

– Ocupa-Belem – PA

– Amazonia em Chamas – PA

– Coletivo Projetação – RJ

– Coletivo Baderna Midiática – SP

– Favela Não Se Cala – RJ

– UniNomade Garoa – SP

– Pré-Vestibular para Negros e Carentes – PVNC – RJ

 

Adenilson Kirixi Munduruku, assassinado pela Polícia Federal com três tiros em novembro de 2012

Adenilson Kirixi Munduruku, assassinado pela Polícia Federal com três tiros em novembro de 2012

 

MAIS INFOS:

Carta dos Munduruku ao Governo Federal
Por que a Polícia Federal matou Adenilson Munduruku?

11 de Setembro: duas datas, uma única história.

O golpe militar no Chile, que inaugurou uma das mais sangrentas ditaduras que a América Latina já conheceu, completa hoje 40 anos. Atualmente, é sempre preciso fazer um esforço para lembrar o significado da data, que é mais facilmente associada ao atentado ocorrido em Nova York, em 11 de setembro de 2001. Mas os aviões comerciais que derrubaram as Torres Gêmeas não deixam ter algo em comum com os aviões do exército chileno que bombardearam a sede da presidência, o Palacio de la Moneda, em 1973.

11 de setembro de 1973

11 de setembro de 1973

Como se sabe, a derrubada do governo de Salvador Allende foi inteiramente assistida pelo governo dos Estados Unidos. Vale lembrar que para além do apoio militar e estratégico ao golpe, Washington havia primeiramente submetido o país latino-americano ao boicote econômico, com o fim de desestabilizar o governo socialista de Allende. O martírio do povo chileno havia assim começado anos antes do golpe, mas se tornaria certamente mais difícil após a ascensão dos militares ao poder. O Chile ditatorial foi também o laboratório onde os economistas da escola de Chicago puseram em prática as teses do neoliberalismo, uma nova forma de gestão da economia especialmente prolífica na produção de crises e no aumento da desigualdade social. A eclosão da crise do petróleo, no mesmo ano, permitiu que o modelo keynesiano do Estado de bem estar social fosse posto em questão, e que o neoliberalismo se tornasse o novo dogma econômico do mundo capitalista. Isso foi acompanhado de um novo avanço norte-americano sobre o Oriente Médio, principal região fornecedora de petróleo. Para garantir o domínio da região, os Estados Unidos se valeram de todas as armas que lhe pareceram boas – estabeleceram alianças com ditadores, fomentaram golpes, incentivaram o imperialismo de Israel, seu eterno aliado, e também armaram exércitos rebeldes que viessem a combater a influência russa sobre a região. Foi esse último caso que deu origem aos guerreiros de Osama Bin Laden, os mesmos que mais tarde realizariam os atentados em Nova York.

Mas os ataques da Al Qaeda não são apenas uma consequência invertida do imperialismo Estadunidense. Eles inauguram, na verdade, uma nova fase desse imperialismo. Sob o pretexto de enfrentar um inimigo sem pátria e sem rosto, o “terrorismo”, os Estados Unidos têm conseguido legitimar as mais ilegítimas das ações imperialistas. De um lado, avança, de forma cada vez mais inescrupulosa, nas práticas de espionagem intra e extraterritoriais. De outro, inventa novas ações militares que submergem o mundo árabe em intermináveis guerras. De Bush a Obama, nenhuma ruptura. Depois de intervenções desastrosas no Afeganistão e no Iraque, os exércitos americanos preparam-se para levar a Síria um novo banho de sangue em nome da paz.

Uma história em comum une, portanto, o 11 de setembro de 1973 ao 11 de setembro de 2001. Ambos os eventos são episódios trágicos da história do imperialismo Estadunidense. História que ainda se desenrola sob nossos olhos.

Every routine has its violence

Work’s routine is alienation

Worker’s routine is work

Bosses’ routine is exploitation

At home the routine is to wake up early

On the streets, the routine is… fear.

 

Massacre is the routine of prisons

The routine of the State is the exception

Punishment is the routine of quarters

The routine of the businessman… is the cartel.

 

Shouting is a brave routine

Silence is a convenient routine

To all those whose routine is oppression

Whether in uniform or in cassock

 

Protesting is the routine of the decent

People who face genocide

To the Indians genocide is routine

In the favelas obituaries are routine

In the palaces something else is routine

 

Fiscal evasion is routine for the wealthy

Capital has the routine of disdain

The routine of those who say sustainable

Is to turn the Indians’ knowledge into profit

 

The routine of the police is vengeance

Struggle is the routine of changes

Media’s routine is cynicism

A playboy’s routine… is hygienism

 

Violence is routine for workers

Violence is routine for prisoners

Violence is routine when it’s convenient

Violence is the routine of disdain

Violence is routine for the military man

Cartel is the violence of businessmen

 

It’s not about braking bank agencies

All routine has its violence

 

 

 

Toute routine a de la violence

L’aliénation est la routine du travail

Le travail est la routine du salarié

Exploiter est la routine du patron

Chez nous la routine est se réveiller tôt

Dans les rues, la routine… c’est la peur

 

Le massacre est la routine de la prison

La routine de l’État est l’exception

Le châtiment est la routine de la caserne

La routine des entreprises… est le cartel.

 

Crier est la routine qui fait du bien

Le silence est la routine qui convient

À ceux qui font de l’oppression une routine

En uniforme ou en soutane, peu importe

 

Protester est la routine des braves

Des gens qui affrontent le génocide

Pour l’indigène la routine est la tuerie

La routine aux favelas est l’obituaire

La routine aux palais… c’est le contraire

 

L’évasion fiscale est la routine des friqués

Le capital a la routine du mépris

La routine de ceux qui disent « durable »

Est faire le savoir indigène… vendable

 

La routine de la police est la vengeance

La lutte est la routine du changement

La routine des médias est le cynisme

La routine des play-boys… est l’hygiénisme

 

La violence est la routine du salarié

La violence est la routine des prisons

La violence est la routine qui convient

La violence est la routine du mépris

La violence est la routine de la caserne

La violence est la routine du cartel

 

Il ne s’agit pas de casser une banque

Toute routine est violente

Toda rutina tiene su violencia

La alienación es la rutina del trabajo

El trabajo es la rutina del peón

Explotar es la rutina del patrón

En casa la rutina es despertar temprano

En las calles, la rutina… es el miedo

 

La masacre es la rutina de la cárcel

La rutina del Estado es la excepción

El castigo es la rutina del cuartel

La rutina del empresario…. es el cartel

 

El grito es la rutina que hace bien

El silencio es la rutina que conviene

A quien hace de la opresión una rutina

No importa si de uniforme … o de hábito

 

El manifiesto es la rutina del decente

De la gente que enfrenta el genocidio

Para el indio la rutina es el exterminio

La rutina de los barrios bajos es el obituario

La rutina del palacio… es lo contrario

 

El dinero negro es la rutina de quien tiene

La rutina del capital es el desdén

La rutina de quien dice que es sustentable

Es tornar el saber indígena…. cosa rentable

 

La rutina de la policía es la venganza

La lucha es la rutina de la mudanza

La rutina de la prensa es el cinismo

La rutina del rico…. es el higienista

 

La violencia es la rutina del peón

La violencia es la rutina de la cárcel

La violencia es la rutina que conviene

La violencia es la rutina del desdén

La violencia es la rutina del cuartel

La violencia del empresario es el cartel

 

No si trata de quebrar una agencia

Toda rutina tiene su violencia

Toda rotina tem sua violência: poema

A alienação é a rotina do trabalho

O trabalho é a rotina do peão

Explorar é a rotina do patrão

Em casa a rotina é acordar cedo

Nas ruas, a rotina… é o medo

 

O massacre é a rotina da prisão

A rotina do Estado é a exceção

O castigo é a rotina do quartel

A rotina do empresário… é o cartel

 

O grito é a rotina que faz bem

O silêncio é a rotina que convém

A quem faz da opressão uma rotina

Não importa se de farda… ou de batina

 

O protesto é a rotina do decente

Da gente que enfrenta o genocídio

Pro índio a rotina é a chacina

A rotina da favela é o obituário

A rotina do palácio… é o contrário

 

Sonegar é a rotina de quem tem

O capital tem a rotina do desdém

A rotina de quem diz que é sustentável

É tornar saber indígena… coisa rentável

 

A rotina da polícia é a vingança

A luta é a rotina da mudança

A rotina da mídia é o cinismo

A rotina do playboy… é o higienismo

 

A violência é a rotina do peão

A violência é a rotina da prisão

A violência é a rotina que convém

A violência é a rotina do desdém

A violência é a rotina do quartel

A violência do empresário é o cartel

 

Não se trata de quebrar uma agência

Toda rotina tem sua violência

 

Baderna Midiática

Toda rotina tem sua violência

Do rio que tudo arrasta se

diz que é violento

Mas ninguém diz violentas as

margens que o comprimem

 (Bertolt Brecht)

 

salvador

Salvador, 7 de setembro de 2013: retrato de uma rotina (clique na imagem para assistir)

Violência: palavra onipresente no discurso dos políticos e da mídia. Usada para definir a ação de quem luta, ela está no centro de uma campanha midiática para a criminalização do movimento das ruas. Não é de hoje que os poderes estabelecidos, fundados eles mesmos na violência cotidiana, fazem um uso redutor dessa palavra. Respondendo a esta campanha, que tem a seu lado governos de diferentes partidos e grupos de mídia supostamente inimigos, procuramos questionar neste video uma visão parcial que pretendem tornar um consenso.

O video pode ser assistido no Youtube com legendas em quatro idiomas e em breve estará disponível para download. Também publicamos a poesia em português, espanhol, inglês e francês. Recomendamos ainda uma série de textos sobre a rotina da violência postados neste site.

“Porque eu quis” (e porque a democracia de exceção me permite)

Um vídeo divulgado logo após as manifestações de 7 de setembro em todo o Brasil já ultrapassou a marca de meio milhão de visualizações. O que choca não é a violência da ação policial – muito menos brutal que nas imagens produzidas no mesmo dia em São Paulo e em Salvador, por exemplo –, mas a tranquilidade e o deboche da autoridade responsável ao ser questionado sobre sua ação arbitrária. A certeza da impunidade do Capitão Bruno, do batalhão de choque de Brasília, não é uma excentricidade dele. A agressão aos manifestantes sem outra justificativa que não a de que fiz “porque eu quis” requer um complemento: “fiz porque os dispositivos de exceção presentes na democracia brasileira me permitem, fiz porque neste país não há qualquer risco de que um abuso ou um crime de minha parte venha a ser julgado por civis, fiz e poderia fazer muito mais (inclusive torturar e matar) sem que isso me trouxesse problemas sérios”.

A prepotência de um oficial que se percebe acima das leis que regem a população civil esconde, por sua vez, o fato de que a repressão interna aos quartéis regidos por códigos militares por vezes coloca os soldados abaixo das leis. Eles raramente recebem alguma punição quando massacram a população civil, mas frequentemente recebem punições duras caso se manifestem por questões trabalhistas, ou ainda caso hesitem em cumprir ordens. Quando, em meio às jornadas de junho, um policial de São Paulo se recusou a partir com uma viatura para cima de manifestantes, colocando a vida destes em sério perigo, ele correu muito mais risco de punição do que se tivesse exterminado pessoas às dúzias pelas ruas da cidade. Muito provavelmente, ele teve sua punição, ao contrário de seus colegas que formam grupos de extermínio na cidade.

Para elucidar que ordem jurídica é esta em que a segurança pública está fora do controle das instituições democráticas, publicamos um texto elaborado em novembro de 2011, no contexto da última ocupação da reitoria da USP – fato que antecipou muitos pontos do debate atual sobre a necessidade de desmilitarização da polícia, sobre o direito de manifestação e sobre as estratégias de criminalização por parte da mídia corporativa.

Notas sobre a PM e a exceção brasileira

Salvo indicação as informações elaboradas abaixo bem como a bibliografia pertinente encontram-se em Jorge Zaverucha, « Relações Civil-Militares : O legado autoritário da constituição brasileira de 1988 » In. : Telles, Edson et. Safatle, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo : Boitempo, 2010, pp. 41-76

***

Segundo a Constituição Federal de 1988, mesmo em tempos de paz, a Polícia Militar é uma força de reserva do exército (CF. 144-IV, §6), situação no mínimo incomum em regimes democráticos consolidados. Por outro lado, essa característica é marcante nos regimes autoritários, que compreendem que o Exército tem prioridade na manutenção da Lei e da Ordem Social.

O governo federal é responsável pela organização das PMs , suas tropas e seus armamentos, estando subordinada aos Governadores (CF 1988 artigo 22-XXI.). As PMs estão atreladas aos planos de defesa interna e territorial do Exército. Em caso de subversão da ordem, as PMs passam ao controle das Regiões Militares do Estado.

Na constituição de 1988, a organização das PMs (tipo de armamento, alinhamento das tropas, construção de novos quartéis) fica a cargo da Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), orgão vinculado ao ministro do exército. A IGPM foi criada através do decreto n° 61.245, de 28 agosto de 1967, buscava coordenar as ações das Polícias Militares nos diversos estados, bem como ressaltar o controle federal sobre as mesmas. Em 1998, a IGPM foi substituída pelo Comando de Operações Terrestres (Coter), orgão operacional dirigido por um general de exército. (Para efeitos de comparação o IGPM era um orgão burocrático sob comando de um general de brigada ou de divisão, o Coter é um orgão operacional dirigido por um general formado para comandar tropas em campos de batalha).

As PMs copiam o modelo de batalhões de infantaria do Exército. São regidas pelo mesmo código Penal e de Processo Penal Militar , seu regulamento disciplinar é muito semelhante ao do exército, conforme decreto n°667, de 2 de julho de 1967.

O Código Penal Militar, por sua vez, é fruto do decreto Lei n°1001 de 21 de outubro de 1969, decretado pelos ministros da Marinha, Exército e Aeronáutica, usando das atribuições que lhes confere o art. 3º do Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o § 1° do art. 2°, do Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968 (Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1001.htm). Neste sentido, os soldados da PM, ao cometerem algum crime contra civis no exercício de suas funções policiais, mesmo em tempos de paz, só podem ser julgados por tribunais militares. A Constituição de 1988 considera crimes militares aqueles que estão contemplados pelo Código Penal Militar, consolidando assim a validade do decreto de Lei de 21 de outubro de 1969. No artigo art. V-LXI da Constituição de 1988, podemos ler « ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei ».

A definição de crime militar, por sua vez, é bastante ampla sendo virtualmente capaz de indiciar quase todo o tipo de crime, inclusive aqueles cometidos contra ou por civis. Tal situação implica em foro privilegiado para aqueles que usam a farda. Nos dias de hoje, segundo a legislação vigente, a possibilidade de um policial militar ser indiciado e julgado por autoridades civis é virtualmente inexistente. Um exemplo emblemático desta situação de exceção aconteceu por conta do massacre contra os Sem Terra em Eldorado dos Carajás. Apenas sob pressão de orgãos internacionais (OEA principalmente) o governo conseguiu, em 1996, mobilizar apoio suficiente para a criação de uma lei que pudesse levar à julgamento em tribunais civis os crimes de assassinato doloso perpetrado por polícias militares em função de policiamento. Trata-se da Lei de n°9299, que incide sobre o decreto de 1969 (O Código Penal Militar). Todavia, leve-se em conta que militares federais estão excluídos dessa Lei, graças ao Projeto de Lei n°314. Ainda assim, segundo a Lei n°9299 aprovada em 9 de maio de 1996, a investigação criminal continua a cargo dos militares. Neste caso, PMs estaduais que cometam assassinato doloso contra civis no exercício de funções policiais, mesmo passíveis de serem julgados por tribunais civis, são investigados por colegas de farda. Há de se ressaltar que outros crimes muito mais comuns como agressão, abuso de poder, prevaricação, danos ao patrimonio, etc, continuam sob a alçada do Tribunal Militar e do CPM. Algo em franco desacordo com o artigo 144 §5° da atual Constituição, uma vez que ele estipula que crimes civis devem ser investigados pela Polícia Civil. Os militares federais que cometem os crimes de assassinato doloso em exercício de funções policiais, por sua vez, continuam sendo julgados por tribunais militares. Algo cuja gravidade salta aos olhos haja visto o Decreto-Lei n°3867 de 24 de agosto de 2001, que confere poder de polícia para as Forças Armadas em ações ostensivas de segurança pública, algo muito em voga nas ocupações de morros no Rio de Janeiro, por exemplo.

Os crimes militares também englobam crimes praticados contra militares ou contra os interesses da instituição. Assim, de acordo com a legislação vigente, civis podem ser julgados por tribunais militares em casos de crimes cometidos em área de jurisdição militar ou, mais genericamente, crimes que estejam sob a Legislação Militar, que como vimos acima é bastante ampla. Esses delitos vão desde roubo de material em área militar (roubo de madeira ou material de construção), trânsito não autorizado, até crimes de subversão da ordem, ou os chamados crimes políticos.

O artigo 109-IV da Constituição diz que compete aos juízes federais processar e julgar crimes políticos. Contudo, não há no Brasil legislação sobre eles. Diante disso, a Lei de Segurança Nacional (14 de dezembro de 1983, aprovada no final do governo do general Figueiredo), que é formalização jurídica da Doutrina de Segurança Nacional (pela qual o ex-presidente Lula foi mantido preso por 31 dias em 1980) termina por cobri-los e os violadores permanecem sendo julgados por Tribunal Federal Militar. Situação única em regimes democráticos, excetuando-se casos extremos como os de Terrorismo, por exemplo.

Poderia-se afirmar que o famosos Patriot Act de 2001, promulgado pelo congresso norte-americano após os controversos eventos de 11 de setembro de 2001, durante a presidência G.W. Bush, inauguraria a era da exceção em nível global, atingindo mesmo democracias vistas como consolidadas [ Cf. Agamben, « O estado de exceção »], ao alargar consideravelmente a possibilidade de intervenção militar na vida civil, tornando possível um governo em permanente estado de sítio. Contudo, se considerarmos a Constituição de 1988, apesar dos avanços sociais ali obtidos, veremos que a exceção, no caso brasileiro, já está no próprio texto da Lei. Se não bastasse os Artigos e Projetos citados acima. O artigo 142 diz que as Forças Armadas « destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem ». Não se trata, ao meu ver, de um dispositivo de emergência , muito comum nas constituições liberais desde os tempos da Revolução Francesa (o estado de sítio, estado de exceção, estado marcial , etc…). O caso parece outro. A julgar pelo o texto da Constituição de 1988 as Forças Armadas estão posicionadas no papel de garantidoras dos poderes da República, sem elas, ou sem sua anuência, o Judiciário, o Legislativo e o Executivo simplesmente não podem funcionar.

 

O reverso da repressão: post-scriptum à ideologia do controle

Recentemente falamos da nova repressão do Estado, da caça aos Black Blocs e da ampliação das formas de controle sobre todos os manifestantes, o que ficara evidente com a determinação de fichar todo e qualquer mascarado nos protestos de 7 de setembro. Mas temos que falar também da outra face desse baile de máscaras. Afinal, o que explica que, ao mesmo tempo em que essa repressão toma corpo, tenhamos visto surgir, um dia antes dos protestos, as mais estranhas manifestações de “apoio” aos “mascarados”? Financiado por cubocards, Caetano Veloso fez um apelo singelo junto ao Mídia Ninja, e tirou fotos encapuzado. Em outro vídeo, lançado por sub-celebridades com o título de “Força da Nação”, brancos de branco se fantasiam de Guy Fawkes ao som de um jingle de estilo publicitário. A mensagem de todos era clara: de máscara no rosto, vamos todos para a rua no 7 de setembro para “mudar esse país”. O que motiva esse apoio das vozes do status quo? A mão que bate, também acaricia?

 

Então quer dizer que o senhor apoia o movimento das ruas? Aham....

Então quer dizer que o senhor Caetano apoia o movimento das ruas? Aham….

 

Acontece que nem só de repressão vive a dominação. Vemos aí as duas faces do poder, que pode ser negativo ou positivo, reprimir a liberdade ou produzir a servidão. Em Maio de 68 um pequeno cartaz, perdido em meio a slogans mais “descolados”, avisava: “Vigilância: os deturpadores estão entre nós”. O aviso valia antes de 68 e vale ainda hoje. Toda mobilização popular que traz a possibilidade de um mundo mais justo deve enfrentar dois inimigos: de um lado, a repressão violenta, e de outro, a deturpação de seus interesses.

Como funciona a deturpação? Grupos conservadores – ou seja, grupos cujo objetivo é manter a desigualdade – se apropriam de símbolos dos movimentos de contestação, propõem falsas mudanças e atacam bodes expiatórios. O caso extremo e mais conhecido é, sem duvida, o nazismo. O partido de Hitler se apropriou do léxico socialista, e desviou-o de sua reivindicação anticapitalista e internacionalista, culpando os judeus pela desigualdade e promovendo o nacionalismo militarista que culminou na Segunda Guerra.

Mas, para além desse caso extremo, a mesma disputa se repete a cada explosão popular. É essa a luta que estamos travando desde junho. Todos se lembram como a mídia teve de alterar sua posição ao longo das jornadas de junho. Inicialmente clamava, como de costume, pela repressão. Quando se tornou claro que a repressão não poderia suprimir a revolta, lançou-se mão da deturpação. O meia culpa de Arnaldo Jabor foi o exemplo mais claro. Ao mudar de posição quanto à repressão, o fantoche do “Instituto Millenium” tentou impor qual deveria ser a pauta de reivindicações do povo que estava na rua. Inventou-se, então, uma falsa mudança: derrubar a PEC37, “a lei da impunidade”. Embora se tratasse apenas de uma regulamentação técnica das atribuições do Ministério Público e da Polícia Federal, não esclarecida na constituição de 1988, ela foi vendida como o emblema da “luta contra a corrupção”. Quando derrubada, foi alardeada pelo cartel midiático como uma grande “mudança”. Mas como derrubar uma emenda constitucional pode ser considerado uma mudança? Se não se aprova uma emenda, a constituição continua a mesma; logo, tudo fica como era antes! A falácia da “PEC37” é um exemplo quase didático de deturpação, de como “mudar tudo para que tudo fique como está”.

Mas se a PEC37 conseguiu atingir as ruas, isso não se deveu apenas ao cartel midiático. Deveu-se, sobretudo, ao roubo de símbolos e métodos do movimento de contestação. Quem não se lembra do vídeo das “5 causas”, apresentado como produzido pelo Anonymous (e depois desmentido por seu canal no Youtube)? O Anonymous tem se tornado a ponta de lança da deturpação. Por apregoar a descentralização e o anonimato, o Anonymous se tornou presa das mais freqüentes usurpações. A última delas ocorreu ontem: “o maior protesto da história do Brasil”. O protesto convocado para o 7 de Setembro possuía uma pauta muito semelhante àquela das “5 causas”: elencava uma série de “projetos” (PECs e PLs), com um linguajar técnico que dá aparência de seriedade (como no programa eleitoral de qualquer político medíocre!), e que não tocam em nada a vida cotidiana da população. Não se trata de questões que emergem do cotidiano, como a luta pelo transporte público que motivou os protestos de junho. A redução da tarifa toca muito concretamente a vida de cada um, e graças aos protestos convocados pelo MPL, no dia 19 de junho todos os habitantes das metrópoles sentiram em seus bolsos o efeito da mobilização popular. Além disso, a pauta do “maior protesto da história” não fazia nenhuma referência à desigualdade social que reina nesse país há séculos. Ao invés disso, ataca os “mensaleiros” e a “corrupção”, como se achássemos aí a verdadeira razão dos problemas sociais no Brasil.

A “corrupção” é hoje a bandeira da falsa luta. Originalmente uma bandeira da esquerda, ela também foi deturpada pela reação conservadora. Tornou-se hoje um modo de ocultar os verdadeiros antagonismos. Dizer que não há dinheiro para a educação e a saúde porque há políticos demais, ou porque esses políticos gastam o dinheiro público com seus altos salários e auxílios, é uma forma de desviar nossa atenção da verdadeira corrupção do Estado: aquela de servir aos grandes interesses econômicos e privatistas em detrimento do bem estar da população. Se os direitos básicos não são garantidos, isso se deve à privatização desses direitos, que foram entregues ao setor privado para especulação e lucro. Nesse sentido, a luta contra as máfias do transporte é uma luta muito mais eficaz contra a corrupção. E o massacre do Pinheirinho, um exemplo mil vezes mais revoltante de corrupção do que qualquer “escândalo” parlamentar.

Repressão e deturpação são assim as duas faces de uma mesma moeda e, mais uma vez, andam juntas para sufocar a luta anticapitalista. Mas a julgar pelos acontecimentos de 7 de Setembro, não estão conseguindo. Não é sempre que a história se repete como farsa. O “maior protesto da história do Brasil”, tentativa de simulacro conservador das jornadas de junho – estas sim a maior onda de protestos da historia do país – não aconteceu. E em oposição aos mascarados de branco e aos mascarados embandeirados, os brasileiros “com orgulho” e “sem violência” que formam o tímido exército da deturpação, impuseram-se os mascarados de preto, aqueles caçados pela repressão, com antipatriotas que interromperam os desfiles militares, antinacionalistas que queimaram bandeiras, anticapitalistas que atacaram os símbolos do capital financeiro e da mídia.

Independência e morte! Violenta é nossa história.

Diversos países do mundo têm sua simbologia cívica marcada pela violência. As datas nacionais muitas vezes remetem a revoluções, como é o caso da França, ou a campanhas militares de Independência, como acontece em quase todos os países que um dia foram dominados por potências europeias. Aqui também celebramos a independência, mas todo o imaginário construído sobre ela, a começar pela escolha da data, é uma negação da violência. Sete de setembro de 1822 representa uma declaração de um príncipe, diante de alguns guardas, à beira de um riacho. O quadro de Pedro Américo, datado de 1888, consolida certa visão da Independência cuja glória é ter sido “ordeira”, como aliás tudo na história do Brasil que nos contam.

Pedro Américo - Independência ou Morte. Por não dizer quase nada sobre o que foi o processo de Independência, esta imagem diz muito sobre o que pretendiam os que escreveram essa história

Pedro Américo – Independência ou Morte. Por não dizer quase nada sobre o que foi o processo de Independência, esta imagem diz muito sobre o que pretendiam os que escreveram essa história

Este imaginário, que começou a ser construído já durante o processo de Independência, encobre tanto a violência quanto a participação de amplos setores da população nos acontecimentos políticos do período. Poucos sabem, mas a Independência do Brasil foi um processo violento, que envolveu de diversas maneiras as classes populares, principalmente nas guerras civis ocorridas na Bahia, Piauí, Maranhão e Pará.

Exemplar quanto a isso é o levante de Muaná, na Ilha de Marajó, que estourou a 28 de maio de 1823. Com participação maciça de indígenas e negros, a revolta exigia não apenas a Independência, como também não ser mais o povo “governado por brancos”. Preocupante para as classes dominantes, fosse a parte favorável ou aquela contrária à separação do Brasil, o levante foi rapidamente sufocado.

Também no Pará, em outubro de 1823, um movimento contra os portugueses levou a uma série de saques a estabelecimentos e à tentativa de tomada do poder por grupos populares. Como punição, cinco pessoas foram executadas sumariamente e cerca de 400 foram presas. Na noite de 19 de outubro a população tentou libertar os presos da cadeia, o que levou à transferência de 256 deles para o porão de uma embarcação militar, por ordem de um mercenário inglês contratado por d. Pedro I para forçar a “adesão” do Pará à independência. O porão era mal ventilado, não havia água potável e estava superlotado, levando as pessoas a ao desespero. Soldados dispararam contra a multidão de presos, levando às primeiras mortes, não apenas por ferimentos a bala, como também por serem as pessoas pisoteadas. Havia uma nuvem de cal virgem, que não se sabe se foi jogada por soldados ou se já estava no chão do porão, levantando-se o pó com o tumulto. Durante a noite do dia 21, a única abertura que servia à entrada de ar foi fechada. No dia seguinte, dos 256 presos, apenas 4 saíram vivos. Somando-se aos cinco executados sumariamente, outros 252 acusados de tentar levar o processo de independência para um outro caminho estavam mortos.

A guerra civil nesta e em outras províncias durou de um a dois anos, mobilizando amplos setores da sociedade. Para o regime que se estabeleceu com a independência, porém, interessava uma imagem pacífica do processo. Os desfiles e as festas de 7 de setembro já ocorriam no Primeiro Reinado e se impuseram com mais força após 1831, com a abdicação de d. Pedro I, pois até então a data mais celebrada pelo Estado era a de seu aniversário. Celebração de um patriotismo bem-comportado, a data foi, por vezes, apropriada por setores populares que pretendiam (assim como os rebeldes mortos no Pará) dar outro destino ao processo de Independência. Ameaças de grandes revoltas populares que se aproveitassem do ambiente cívico de 7 de setembro eram bastante comuns. Em Mato Grosso, onde em maio de 1834 havia ocorrido um movimento político violento, a festa e o desfile de 7 de setembro foram cancelados por uma ordem do governo publicada em 21 de agosto. Em nome da “pública tranquilidade”, afirma-se que serão “considerados culpados todos aqueles que largarem de seus trabalhos” para se manifestar naquela data.

O temor não era uma peculiaridade local. No Rio de Janeiro, então capital do Brasil, o 7 de setembro de 1831 foi marcado por boatos de que os liberais exaltados pretendiam aproveitar-se da data para um levante. Os exaltados eram um grupo político com forte base popular, que tinha uma pauta radical para a transformação da sociedade brasileira, defendendo o voto universal (inclusive feminino, que não existia sequer em outros países), a reforma agrária (com o fim do latifúndio) e medidas contra a escravidão. Quatro dias antes da festa, um artigo publicado no Diário do Rio de Janeiro conclamava os “amigos da pátria” a atacar violentamente os “anarquistas”, como eram chamados os exaltados, caso estes se manifestassem no 7 de setembro:

Hoje ninguém deve dormir. […] Venham eles; não os tememos. Se a Pátria tem inimigos, tem ainda mais amigos; podemos contar com dez mil espingardas; e baste que cada um das janelas dê o seu tirinho, não chega uma perna para cada espingarda; temos muita telha pelos telhados para escovar-lhes as cabeças; e muitos honrados Militares, que lá os irão buscar ao Campo se aí se quisessem acantonar. Vamos já decidir este negócio, e viva quem vencer. Os tais de faca e punhal poderão assassinar a alguém; mas estamos firmes, e temos jurado, que por uma vítima da Pátria hão de ser sacrificados cem anarquistas; nós os conhecemos. O Governo não alegue depois ignorância.

O discurso de ódio aos ditos “anarquistas” legitimava frequentemente a perseguição feroz do governo aos exaltados, que tiveram inclusive sua imprensa silenciada. O Estado reprimiu e fechou o caminho do diálogo, não sendo um acaso o fato de que alguns anos depois a violência se tornou generalizada, com grandes revoluções armadas, muitas delas de caráter popular, atravessando o país. Os acontecimentos sangrentos ocorridos no Pará em 1823 se repetiriam de forma mais grave na repressão à Cabanagem, quando mais de 2 mil pessoas morreram em navios prisões semelhantes àquele, enquanto aguardavam julgamento. Muitos sequer tinham outra acusação que não a de serem “cabanos” – ou seja, pobres indígenas ou negros.

Décadas e mais décadas de violência do Estado contra sua própria população foram mais que suficientes para mostrar que o 7 de setembro nada podia oferecer a quem luta por um mundo mais livre e igual. Em períodos de militarização da sociedade e, ainda mais, nos de ditaduras, a data serviu para propagar uma mitologia nacional que legitima a violência estatal e propaga valores contrários à igualdade e à liberdade, como a xenofobia e o militarismo.

Que a data sirva para lembrar os mortos de 1823, os perseguidos de 1831 e todos aqueles que o Estado brasileiro não apenas matou, mas excluiu de sua história, para celebrar um ato inofensivo de um príncipe à beira de um rio. Ao contrário daquela cena, reconhecidamente inventada, de d. Pedro sobre um cavalo erguendo sua espada, a história deste Estado nada tem de inofensiva.

Digam o que disserem os livros deles, violenta é nossa história.

A ideologia do controle

Há apenas alguns dias o Baderna Midiática difundiu um vídeo intitulado “Severamente Punidos” no qual antecipava as consequências que se poderiam esperar da intensa campanha midiática contra os Black Blocs. O paralelo com o que acontecera em 2001 em Gênova servia de alerta: a apresentação dos Black Blocs como usurpadores violentos das manifestações, como vândalos incontroláveis, preparava o campo para uma repressão desmesurada, com o desrespeito de normas legais e o uso abusivo da violência policial. E, mais importante ainda, essa repressão não se limitaria aos vilões declarados, mas abrangeria todas as práticas de contestação, “pacíficas” ou não. Um massacre midiático antecipa sempre um massacre real, dizíamos. Esse massacre já começou.

A prisão dos administradores da página do Black Bloc RJ foi feito de maneira autoritária e ilegal por par parte do Departamento de Repressão a Crimes Informáticos (DRCI) – mas que pelo modo com que vem agindo merece guardar apenas a primeira parte do nome. Como pode ser considerado legal que pessoas que não foram flagradas cometendo nenhum “ato de violência” e nenhum “ato de vandalismo” sejam presas em suas próprias casas e imputadas por “formação de quadrilha”? Como se não bastasse o sigilo informático ser quebrado sem justificativa válida, a prisão foi logo completada pelos típicos procedimentos de incriminação da polícia. Os administradores da página são agora apresentados como a encarnação do Mal: não são apenas violentos, mas são também “corruptores de menores”, “pedófilos” e “maconheiros” ! Mas alguém consegue explicar porque a DRCI agiu de maneira tão contundente contra os Black Blocs, apresentando como prova de incriminação uma simples postagem na qual se ensinava a construir um “ouriço”, mas parece não se importar com as diversas páginas e publicações de conteúdo abertamente racista e filo-nazista?

Na verdade, como já havíamos dito, os Black Blocs são apenas o bode expiatório que serve para justificar um aparato repressivo geral. A propaganda do terrorismo e da violência é a ladainha que legitima a ilegalidade do Estado, desde que esse existe. E o Estado do Rio de Janeiro é um Estado de Exceção declarado desde a criação da “Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas”. A Comissão é a prova de que a repressão não se limita aos Black Blocs ou a nenhum outro grupo de “manifestantes violentos”. A recente determinação da “Ceiv” de que todos os “mascarados” serão fichados nas manifestações é provavelmente um dos atos “legais” mais inconstitucionais da história do Brasil pós-ditadura. Trata-se de fichar como criminosos pessoas que não cometeram crime nenhum. Será que ainda temos que lembrar o quanto é hipócrita um Estado que extermina impunemente nas favelas ter a cara de pau de dizer que violência é quebrar vitrines? Não bastando, ainda querem transformar manifestante mascarado em criminoso, pelo simples ato de usar máscaras (ainda estamos na terra do carnaval?). Fica evidente que o objetivo dessa repressão é transformar todo e qualquer manifestante em criminoso pelo simples ato de não se conformar a uma sociedade injusta e desigual.

Black Bloc em manifestação no Rio de Janeiro

Black Bloc em manifestação no Rio de Janeiro

E não nos iludamos sobre a possibilidade de traçar linhas de demarcação entre o bom e o mau protesto. O jornal “O Estado de São Paulo” – ainda mais que o “Globo” e seu falso mea culpa parece ter nostalgia dos tempos em que apoiava a ditadura. Em editorial de ontem , o “Estadão” saúda o autoritarismo da “Ceiv” e sua política de criminalização, por “combater o vandalismo”, ao mesmo passo em que saúda a ação da justiça de São José dos Campos que impediu uma manifestação do Sindicato dos Metalúrgicos de interromper o tráfego na Rodovia Presidente Dutra – ressuscitando o falacioso argumento de que as manifestações “perturbam o tráfego”, quando todos sabem que o trânsito das grandes metrópoles brasileiras não precisa de ajuda para ser perturbado: para isso já basta a espoliação do transporte público levado a cabo pelas diversas máfias dos transportes. Na argumentação do “Estadão”, fica claro como se articula a ideologia do controle. O combate ao vandalismo se conjuga rapidamente ao combate à toda e qualquer mobilização social, mesmo as mais tradicionais, como as sindicais. Nessa ótica, toda forma de reivindicação que ultrapasse o estreito limite da política parlamentar existente – com seus inúmeros resquícios legais da recente ditadura – deve ser “severamente punido”.

Violento é o trabalho: sobre o amor dos pobres à preguiça

“A fome e a miséria são só devidas à preguiça do povo, que ali devia viver na abundancia.

Qual o motivo porque uma mulher, que não tem o que comer no dia seguinte; que mora em um rancho de palha, que não possui mais que uma rede velha e rota, que verte a saúde por todos os poros – rejeita 30$000 por mês para amamentar uma criança, recebendo além do salario um bom tratamento, ao passo que não tem pejo de estender a mão para implorar a caridade publica?

Qual o motivo porque uma rapariga que vive na prostituição rejeita 20$000 mensais para servir de criada grave, e prefere ao ganho certo a nudez e a fome, uma vez que tenha liberdade para viver na devassidão?

E homens robustos-que passam a vida em continua bebedeira, deitados debaixo de miseras palhoças, acordando somente para comerem um pouco de mandioca, porque recusam 30$000 por mês para servirem como criados ou camaradas?

Não será tudo isto negação completa ao trabalho, amor excessivo á preguiça?”

O excerto acima foi tirado de um livro escrito por um comerciante português que viveu no Brasil há cerca de 150 anos. A primeira coisa que percebemos nele é que sempre antes na história deste país o discurso sobre a preguiça dos pobres existiu. Atualizados os valores, as mesmas frases poderiam ser encontradas facilmente na internet hoje.

A segunda coisa é que a pergunta retórica no final do excerto pode ser respondida de maneira diferente daquela esperada pelo autor usando apenas dados fornecidos por ele mesmo. No texto ele informa alguns preços do mercado local. Uma galinha custava 2$500, uma abóbora podia custar 1$000, um bom peixe, 3$000. Ou seja, amamentar filho de rico (podendo comprometer a amamentação do próprio filho) ou trabalhar como criado rendia um salário que dava pra comprar 12 galinhas por mês, ou 30 abóboras, ou 10 peixes. Ser uma “criada grave” (a opção dada à prostituta), permitia comprar 8 galinhas, ou 20 abóboras, ou 6 peixes por mês.

Ora, o próprio autor afirma no trecho citado que é possível para essas pessoas “comer um pouco de mandioca” (provavelmente plantada no próprio terreno) e “passar a vida em continua bebedeira” (graças a trabalhos esporádicos ou à comercialização de uma pequena produção própria) sem ter que se sujeitar a isso.

Então por que diabos alguém em sã consciência se sujeitaria à exploração de sua força de trabalho nessas condições? Por um salário que compra 10 peixes ao mês é que não é. Mas também aí o autor dá a resposta, revelando a mágica que transformou pobres relativamente autônomos em pobres sujeitos a vender sua mão-de-obra:

“Lance o governo um olhar de compaixão para aquele povo, e procure dar-lhe um remédio eficaz à preguiça, ao contrario terá de vê-lo sempre miserável no meio da abundância, a província inabitável. É-lhe necessário um reativo violento!”

Um reativo violento! Forçar os pobres ao trabalho, impedindo a posse de terras para cultivo próprio e punindo violentamente a suposta “vadiagem”: eis a receita mágica aplicada no Brasil e no mundo. Note que nem estamos falando da escravidão, sistema fundado na violência mais brutal e que na primeira metade do século XIX explorava quase metade da população brasileira. Foi o “reativo violento” que tornou o pobre, além de pobre, um sujeito explorado e dependente – e no caso dos escravos, tornou o alforriado um “vadio” para que continuasse sendo violentamente forçado ao trabalho.

O Corpo de Trabalhadores do Pará, criado em 1838, foi um exemplo de “reativo violento” usado no Brasil. Já no texto da lei a inciativa se justificava como solução para os “vadios” – quase sempre indígenas, que viviam do que produziam ou obtinham na floresta. Com essa legislação, em vigor até pelo menos a década de 1870, o Estado podia sequestrar pessoas para o trabalho forçado e conceder sua exploração a particulares. A Cabanagem (1835-1838) havia sido, em boa parte, uma reação a tentativas de efetivar este tipo de exploração. O Corpo de Trabalhadores nunca foi chamado de violento da forma como os cabanos que reagiam a isso foram.

O Corpo de Trabalhadores do Pará, criado em 1838, foi um exemplo de “reativo violento” usado no Brasil. Já no texto da lei a inciativa se justificava como solução para os “vadios” – quase sempre indígenas, que viviam do que produziam ou obtinham na floresta. Com essa legislação, em vigor até pelo menos a década de 1870, o Estado podia sequestrar pessoas para o trabalho forçado e conceder sua exploração a particulares. A Cabanagem (1835-1838) havia sido, em boa parte, uma reação a tentativas de efetivar este tipo de exploração. O Corpo de Trabalhadores nunca foi chamado de violento da forma como os cabanos que reagiam a isso foram.

Pode esquecer aquela edificante estória do contrato entre indivíduos autônomos que trocam livremente dinheiro por força de trabalho. Sem o “reativo violento” dado pelo “governo”, nada de exploração! E isso nosso amigo do século XIX já sabia muito bem. Ele só não podia confessar que o que lhe interessava era a exploração do outro, e não a melhoria de sua situação (ou alguém acha que a situação de uma mulher melhora com 6 peixes por mês em troca de um filho potencialmente subnutrido?). É por isso que o autor tinha que apelar para o moralismo, falando da preguiça, da prostituição e da bebedeira. O moralismo é o argumento preferencial de quem não pode ir fundo na análise da sociedade porque tem interesses inconfessáveis na exploração e opressão dos outros.

Quando alguém grita “vagabundo”, “puta” ou “maconheiro” é muito provável que, mais do que ignorância, estejamos diante da defesa de interesses que não podem dizer seu nome.

Quando clamam por um “reativo violento” contra o “vagabundo”, a “puta” ou o “maconheiro” é muito provável que estejamos diante de uma máscara que encobre a verdadeira face da exploração.

Violento é o capital.

Violento é o trabalho.

Baderna Midiática

Fonte do Excerto: Joaquim Ferreira Moutinho, Notícia sobre a província de Mato Grosso (1869)

Severamente punidos – a mídia demoniza o Black Block

Corpo de Carlo Giuliani, militante assassinado com dois tiros a queima roupa pela polícia de Gênova

Corpo de Carlo Giuliani, militante assassinado com dois tiros a queima roupa pela polícia de Gênova, em 2001. Clique na foto para assistir o video.

O vídeo denuncia a campanha midiática contra o movimento Black Block como uma estratégia para criminalizar os protestos e incentivar a repressão policial. Lembramos aqui que o mesmo aconteceu em Gênova em 2001. A campanha da mídia italiana contra os Black Blocks legitimou a repressão policial que resultou na morte de Carlo Giuliani, assassinado por um policial com dois tiros a queima-roupa durante uma manifestação, e no massacre da escola Diaz, quando uma operação envolvendo mais de 300 policiais deixou 82 feridos, 63 hospitalizados e uma jovem em coma.

Um massacre midiático prepara sempre um massacre real. Violenta é a mídia!

20 anos do Massacre de Vigário Geral

20 anos do Massacre de Vigário Geral

20 anos do Massacre de Vigário Geral

Na noite de 29 de agosto de 1993 mais de 50 policiais encapuzados entraram na favela de Vigário Geral para executar seus moradores. “Vingaram” a morte de 4 policiais alguns dias antes atirando em alvos aleatórios, sendo que dos 21 mortos nenhum tinha relação com o crime organizado. Uma família inteira, de sete pessoas, foi assassinada.

45 dos 52 policiais acusados formalmente pelo massacre foram inocentados por falta de provas.

Quem mesmo promove a violência?
Onde mesmo está o “fascismo”?

Violência, mas para quê?

Dica de leitura: em um momento em que a palavra “violência” parece não sair da boca de todos os porta-vozes da mídia, vale perguntar: “violência, mas para quê?”

O texto do filósofo alemão Anselm Jappe apareceu no Brasil no momento justo: junho de 2013. Foi, porém, escrito em 2009, tendo como motivação a prisão sob acusação de “terrorismo”(!) de 9 anarquistas na cidade de Tarnac, na França, que teriam supostamente planejado um ataque a uma linha de trem. Se tinham de fato planejado algo, o que nunca foi provado, isso não teria sido mais do que a sabotagem de uma linha de alta velocidade. A França “foi muito longe no apagamento das fronteiras entre terrorismo, violência coletiva, sabotagem e ilegalidade”, afirma Jappe. Mas isso não diz respeito apenas ao país europeu: “essa criminalização de todas as formas de contestação não estritamente “legais” é um grande acontecimento de nossa época”, e coloca a nu o funcionamento da “democracia” atual:

“Toda e qualquer oposição à política das instâncias eleitas que vai além de um abaixo-assinado ou de uma carta ao deputado local é por definição “antidemocrática”. Em outras palavras, tudo o que poderia ser minimamente eficaz é proibido, mesmo o que ainda era permitido há não muito tempo.”

Mas isso não significa fazer uma apologia incondicional da violência. Não se deve confundir violência com radicalidade. Como bem lembra Jappe: “Admirar a violência e o ódio enquanto tais ajudará o sistema a descarregar a violência em bodes expiatórios”. É preciso que essa violência seja devidamente acompanhada de uma critica do funcionamento do capitalismo – logo, do valor, do trabalho, do capital, da concorrência – para que o sentimento de humilhação que o controle nos impõe possa levar à uma subversão inteligente e não a um simples massacre.

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