Recentemente falamos da nova repressão do Estado, da caça aos Black Blocs e da ampliação das formas de controle sobre todos os manifestantes, o que ficara evidente com a determinação de fichar todo e qualquer mascarado nos protestos de 7 de setembro. Mas temos que falar também da outra face desse baile de máscaras. Afinal, o que explica que, ao mesmo tempo em que essa repressão toma corpo, tenhamos visto surgir, um dia antes dos protestos, as mais estranhas manifestações de “apoio” aos “mascarados”? Financiado por cubocards, Caetano Veloso fez um apelo singelo junto ao Mídia Ninja, e tirou fotos encapuzado. Em outro vídeo, lançado por sub-celebridades com o título de “Força da Nação”, brancos de branco se fantasiam de Guy Fawkes ao som de um jingle de estilo publicitário. A mensagem de todos era clara: de máscara no rosto, vamos todos para a rua no 7 de setembro para “mudar esse país”. O que motiva esse apoio das vozes do status quo? A mão que bate, também acaricia?
Acontece que nem só de repressão vive a dominação. Vemos aí as duas faces do poder, que pode ser negativo ou positivo, reprimir a liberdade ou produzir a servidão. Em Maio de 68 um pequeno cartaz, perdido em meio a slogans mais “descolados”, avisava: “Vigilância: os deturpadores estão entre nós”. O aviso valia antes de 68 e vale ainda hoje. Toda mobilização popular que traz a possibilidade de um mundo mais justo deve enfrentar dois inimigos: de um lado, a repressão violenta, e de outro, a deturpação de seus interesses.
Como funciona a deturpação? Grupos conservadores – ou seja, grupos cujo objetivo é manter a desigualdade – se apropriam de símbolos dos movimentos de contestação, propõem falsas mudanças e atacam bodes expiatórios. O caso extremo e mais conhecido é, sem duvida, o nazismo. O partido de Hitler se apropriou do léxico socialista, e desviou-o de sua reivindicação anticapitalista e internacionalista, culpando os judeus pela desigualdade e promovendo o nacionalismo militarista que culminou na Segunda Guerra.
Mas, para além desse caso extremo, a mesma disputa se repete a cada explosão popular. É essa a luta que estamos travando desde junho. Todos se lembram como a mídia teve de alterar sua posição ao longo das jornadas de junho. Inicialmente clamava, como de costume, pela repressão. Quando se tornou claro que a repressão não poderia suprimir a revolta, lançou-se mão da deturpação. O meia culpa de Arnaldo Jabor foi o exemplo mais claro. Ao mudar de posição quanto à repressão, o fantoche do “Instituto Millenium” tentou impor qual deveria ser a pauta de reivindicações do povo que estava na rua. Inventou-se, então, uma falsa mudança: derrubar a PEC37, “a lei da impunidade”. Embora se tratasse apenas de uma regulamentação técnica das atribuições do Ministério Público e da Polícia Federal, não esclarecida na constituição de 1988, ela foi vendida como o emblema da “luta contra a corrupção”. Quando derrubada, foi alardeada pelo cartel midiático como uma grande “mudança”. Mas como derrubar uma emenda constitucional pode ser considerado uma mudança? Se não se aprova uma emenda, a constituição continua a mesma; logo, tudo fica como era antes! A falácia da “PEC37” é um exemplo quase didático de deturpação, de como “mudar tudo para que tudo fique como está”.
Mas se a PEC37 conseguiu atingir as ruas, isso não se deveu apenas ao cartel midiático. Deveu-se, sobretudo, ao roubo de símbolos e métodos do movimento de contestação. Quem não se lembra do vídeo das “5 causas”, apresentado como produzido pelo Anonymous (e depois desmentido por seu canal no Youtube)? O Anonymous tem se tornado a ponta de lança da deturpação. Por apregoar a descentralização e o anonimato, o Anonymous se tornou presa das mais freqüentes usurpações. A última delas ocorreu ontem: “o maior protesto da história do Brasil”. O protesto convocado para o 7 de Setembro possuía uma pauta muito semelhante àquela das “5 causas”: elencava uma série de “projetos” (PECs e PLs), com um linguajar técnico que dá aparência de seriedade (como no programa eleitoral de qualquer político medíocre!), e que não tocam em nada a vida cotidiana da população. Não se trata de questões que emergem do cotidiano, como a luta pelo transporte público que motivou os protestos de junho. A redução da tarifa toca muito concretamente a vida de cada um, e graças aos protestos convocados pelo MPL, no dia 19 de junho todos os habitantes das metrópoles sentiram em seus bolsos o efeito da mobilização popular. Além disso, a pauta do “maior protesto da história” não fazia nenhuma referência à desigualdade social que reina nesse país há séculos. Ao invés disso, ataca os “mensaleiros” e a “corrupção”, como se achássemos aí a verdadeira razão dos problemas sociais no Brasil.
A “corrupção” é hoje a bandeira da falsa luta. Originalmente uma bandeira da esquerda, ela também foi deturpada pela reação conservadora. Tornou-se hoje um modo de ocultar os verdadeiros antagonismos. Dizer que não há dinheiro para a educação e a saúde porque há políticos demais, ou porque esses políticos gastam o dinheiro público com seus altos salários e auxílios, é uma forma de desviar nossa atenção da verdadeira corrupção do Estado: aquela de servir aos grandes interesses econômicos e privatistas em detrimento do bem estar da população. Se os direitos básicos não são garantidos, isso se deve à privatização desses direitos, que foram entregues ao setor privado para especulação e lucro. Nesse sentido, a luta contra as máfias do transporte é uma luta muito mais eficaz contra a corrupção. E o massacre do Pinheirinho, um exemplo mil vezes mais revoltante de corrupção do que qualquer “escândalo” parlamentar.
Repressão e deturpação são assim as duas faces de uma mesma moeda e, mais uma vez, andam juntas para sufocar a luta anticapitalista. Mas a julgar pelos acontecimentos de 7 de Setembro, não estão conseguindo. Não é sempre que a história se repete como farsa. O “maior protesto da história do Brasil”, tentativa de simulacro conservador das jornadas de junho – estas sim a maior onda de protestos da historia do país – não aconteceu. E em oposição aos mascarados de branco e aos mascarados embandeirados, os brasileiros “com orgulho” e “sem violência” que formam o tímido exército da deturpação, impuseram-se os mascarados de preto, aqueles caçados pela repressão, com antipatriotas que interromperam os desfiles militares, antinacionalistas que queimaram bandeiras, anticapitalistas que atacaram os símbolos do capital financeiro e da mídia.