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O Apartheid brasileiro está nu! Sobre os ditos “arrastões” em shoppings

Multiplicam-se nas redes sociais os “rolezinhos” de jovens das periferias para transformar corredores e estacionamentos de shopping centers em bailes funk improvisados.

Os “rolezinhos” são chamados de “invasões” ou “arrastões” pela mídia corporativa.

“Invasão”, no vocabulário da mídia, ocorre sempre que um ou mais pobres e negros se deslocam para um lugar onde “não deveriam estar”, pois numa sociedade segregada há lugares definidos para os diferentes segmentos sociais e raciais.

Já “arrastão” ocorre quando são centenas ou milhares de pobres e negros reunidos onde “não deveriam estar”. Pode ser um shopping ou uma praia de bacana.

Originalmente, “arrastão” era um tipo de crime violento. A estratégia da mídia é a de fazer confundir com assaltos em série a simples reunião de jovens da periferia que, com a criminalização dos bailes funk, decidiu se encontrar nos shoppings e improvisar seus eventos convocados pelo facebook.

Se a rua esta sendo vedada a eles, nada mais natural que achar um novo espaço.

Se quem pede que a rua seja vedada a eles frequenta o shopping, nada mais natural que este novo espaço seja o shopping, onde vão incomodar uma parte dos que devem ser incomodados.

Segregação explícita: próxima moda nos shoppings brasileiros?

Segregação explícita: próxima moda nos shoppings brasileiros?

Com essa atitude de jovens badernistas, o apartheid brasileiro se torna mais visível. Os shoppings daqui já não estão longe de usar aquelas placas “Whites Only” do Sul dos EUA e isso vai ser ainda mais descarado se essa onda de “rolezinhos” ocorrer. Ao mesmo tempo, a violência policial vai se estender para o interior e entorno dos shoppings, como já ocorreu em Vitória e em Itaquera (São Paulo).

A cena é comum em outros espaços, mas de forma alguma no templo dos consumidores endinheirados.

Vitória (ES): a cena brutal é comum em outros espaços, mas de forma alguma no templo dos consumidores endinheirados. Numa sociedade espacialmente segregada entre classes e raças, a aproximação é encarada como invasão de bárbaros

Ou seja, uma derrota, ainda que pequena, da tradição de segregação velada, que esconde e dissimula o confronto, jogando a violência pra periferia.

Só dá pra combater o que é visível.

Que se jogue o apartheid na cara de todos.

Que o confronto seja aberto.

A onda, ao que parece, virá. Se a repressão comer solta como (sempre) promete, é possível que se faça jus ao rótulo de “arrastão” que a mídia quer colar nesses eventos. Dispersar violentamente uma multidão em meio a um templo do consumo teria provavelmente este efeito, afinal trata-se de uma multidão de pessoas formadas como consumidoras sem que tivessem dinheiro para se realizarem como tais.

Neste caso, que ao menos se possa dizer que o fim de ano foi melhor pra muita gente.

Para Falar dos Black Blocs

Não há dia que passe sem que a mídia publique a opinião de mais um intelectual sobre o novo fenômeno das ruas. Para você que não quer ficar de fora, a Baderna Midiática dá a receita de como fazer um típico texto de intelectual midiático “de esquerda” sobre os tão falados black blocs.

Os paralelos históricos são uma ferramenta importante para tentar entender o presente. Mas, com uma pequena dose de má fé ou ignorância, eles também podem ser usados de maneira inversa, para confundir. Como o black bloc é pouco conhecido, uma boa estratégia para desqualificá-lo é dizer que ele é igualzinho a algo que já aconteceu antes. Para uma argumentação mais moderada, recomenda-se compará-lo ao luddismo. Para quem não se lembra, os ludditas foram os quebradores de máquinas que se opuseram à nascente industrialização na Inglaterra no inicio do século XIX. Desde cedo os ludditas entenderam algo que demorou um século e meio para entrar nas cabeças bem pensantes da esquerda ortodoxa: a técnica não é neutra. Mas, apresar disso, os ludditas passaram para o senso comum da esquerda tradicional como exemplo de suma ignorância, pois não teriam entendido que o problema não eram as máquinas em si, mas a exploração capitalista. Da mesma forma, os black blocs, coitadinhos, não entenderam que não adianta quebrar os caixas eletrônicos e as agências bancárias para acabar com o capitalismo. Mas cuidado, essa comparação pode ser perigosa. Os ludditas foram criticados pelo movimento operário posterior porque se limitaram a quebrar máquinas, quando deveriam ter atacado os senhores das máquinas; exigiram a restauração de sua condição anterior de trabalhadores-artesãos, ao invés de questionar sua condição de explorados. É preciso, portanto, ser claro para evitar que a comparação com os ludditas leve a ideias ainda mais radicais – queremos é que os black blocs voltem para casa. A solução é simples. Basta mostrar como os mecanismos do sistema produzem efeitos mais concretos do que o quebra-quebra, e que, logo, é muito mais radical aderir ao sistema do que questioná-lo. Sugestões dos internautas: dizer que “baixar em um ponto a taxa de juros é mais eficaz do que quebrar bancos”, ou que “falta organização política aos black blocs” (por “organização” leia-se: filiação partidária).

A comparação com as Revoluções do passado é salutar. Sabemos bem que a esquerda partidária há muito abandonou toda pretensão revolucionária. Mas ela ainda se vê na obrigação de olhar com bons olhos algumas revoltas de outrora, exemplos dignos do uso da violência. Por conta disso, a esquerda partidária não pode, ao contrario da direita partidária, recusar inteiramente a violência (mas obviamente a violência do Estado não entra nesta conta). É preciso distinguir, então, entre uma violência boa e uma violência má. A principal característica da violência boa, chamada de “violência revolucionária”, é a de ter existido no passado e de não existir mais. Se atual, ela deve necessariamente estar muito longe de nós. Já a característica da violência má é a de estar nas ruas, aqui e agora. Caso tenha duvidas se a violência de um movimento é boa ou não, basta fazer a seguinte pergunta: eu posso tomar parte direta nesse movimento? Se a resposta é “não”, pode falar em “violência revolucionária” sem temor. Assim, pode louvar a violência dos “rebeldes” sírios ou dos resistentes palestinos, sem por isso ter vergonha de desacreditar os black blocs que quebraram a sua agência Bradesco.

Mas, sobretudo, é preciso deixar claro que a violência das Revoluções do passado nada tem a ver com tudo que se passa no presente. Para reforçar esse argumento, você pode insistir no fato de que os sujeitos são outros. A violência de 1917 era fruto da pura união dos explorados operários com os explorados camponeses. Em 1968, os operários se juntaram dessa vez aos estudantes, que, naqueles tempos sim eram revolucionários (“não se fazem mais estudantes como antigamente”, nos dizem os professores que ensinam a esses estudantes!). Para gerar um contraste perfeito, esvazie a subjetividade da violência atual, faça dela uma violência sem sujeito, com o uso de fórmulas repetitivas, tautológicas: “vandalismo de vândalos”, “baderna de baderneiros”. Se achar realmente necessário nomear os sujeitos, a sugestão de um internauta é: aludir a uma aliança entre estudantes baderneiros e criminosos da periferia. Essa alusão tem a vantagem de despertar o medo-classe-média, mas é um pouco forçada e você corre o risco de fazer papel de Bucci.

Para os menos moderados e mais sem vergonhas, recomendamos o paralelo “super-trunfo”: comparar os black blocs aos fascistas italianos. Na falta de argumentos para fundamentar tal comparação (já que esses simplesmente não existem) você sempre pode apelar para a cor da camisa. A analogia é frágil, para dizer o mínimo, mas perante uma plateia de policiais pode colar.

Combate ao autoritarismo e ao monopólio da mídia, apoio a grevistas e feminismo: típicas bandeiras fascistas, não é mesmo?

Combate ao autoritarismo e ao monopólio da mídia, apoio a grevistas e feminismo: típicas bandeiras fascistas, não é mesmo?

Atenção! : desaconselhamos todo e qualquer paralelo com revoltas do passado brasileiro. Nada de falar em balaiada, cabanagem, motim do vintém ou revolta da vacina! Além de não serem chiques como os exemplos europeus, os exemplos tupiniquins podem abalar a ideia de que o povo brasileiro é, por natureza, “pacífico e ordeiro”.

Para aqueles que não gostam do visual retrô e preferem a última moda, nada como evocar o inimigo número 1 da nova ordem mundial: o terrorismo. Nos EUA, o “gigante” do norte, o terrorismo tem feito maravilhas para o avanço do sistema repressivo e de controle da vida dos cidadãos. Aqui no Brasil, ele pode fazer o mesmo. Infelizmente ainda não existem indícios de que os black blocs sejam fundamentalistas, ou mesmo que tenham qualquer religião, e fica difícil apontá-los como braço da Al Qaeda. Mas isso não impede que eles “peguem um avião e joguem no Congresso”, como propôs um senador governista, mais inventivo do que qualquer intelectual.

Já aqueles que preferem o visual clean, nada como a volta do higienismo. E ele está voltando com tudo na esquerda institucional, com suas fórmulas clássicas que parecem não envelhecer. Você pode chamar os black blocs de “parasitas” ou “sanguessugas” que estão se aproveitando das manifestações (para quê, mesmo?) ou qualificá-los de “doença social”, que precisa ser combatida com duros remédios. Sugestão do internauta: “catapora social”, pois é uma doença “epidérmica e superficial” (para dar uma pitada de maringonismo no seu cafezinho)

Poderia ser propaganda neonazista, poderia ser uma capa da Veja, mas não: a fonte é um portal "de esquerda"

Poderia ser propaganda neonazista, poderia ser uma capa da Veja, mas não: a fonte é um portal “de esquerda”

Não se esqueça de lembrar também que o uso das máscaras é prejudicial aos protestos (o link indicado é de uma republicação, pois o original foi tirado do ar). Elas permitem a infiltração de P2s e criminosos. Antes do uso das máscaras a polícia, coitada, não conseguia infiltrar agentes – como se disfarçar sem a máscara do Guy Fawkes, como? E os criminosos, hoje tão abundantes, não tinham vez. Todos sabem, e os índices demonstram, que não havia criminalidade nas grandes metrópoles brasileiras antes de junho de 2013. Você pode ser inclusive o primeiro a dizer que quando os black blocs quebram os caixas eletrônicos não querem manifestar sua posição anticapitalista, mas sim roubar o dinheiro que está ali dentro –só não descobriram como.

Último argumento que não pode faltar: a violência dos black blocs justifica a violência da Policia Militar contra os manifestantes. Trata-se aqui de uma simples inversão de causa e efeito, qualquer um pode fazer. O documentário Com Vandalismo mostra como nos protestos de junho em Fortaleza, manifestantes pacíficos, inicialmente contrários ao “vandalismo”, mudaram de opinião e abandonaram o grito “sem violência” depois de terem sofrido na pele a violência irracional da Policia Militar. O aparecimento de grupos que se valem da tática black bloc é uma resposta à violência com a qual protestos são habitualmente tratados pela polícia que a ditadura nos deixou. Basta lembrar de 13 de junho, quando não se falava em black bloc, e quando a imprensa foi obrigada a admitir que a repressão da manifestação ocorreu sem motivo algum. Portanto, é importante fazer esquecer tudo isso, e fingir que a violência policial começou por causa dos black blocs e não o contrário.

Mais importante de tudo. Não deixe, em nenhum momento, o seu leitor suspeitar que exista relação entre a violência cotidiana nas periferias e a violência das manifestações. Não deixe seu leitor sequer imaginar que o ódio que por vezes os black blocs ostentam pela polícia possa ser em algum grau motivado pelo desprezo desumano e homicida que essa policia ostenta perante uma parte da população. Não deixe, enfim, seu leitor suspeitar que o espancamento do coronel indefeso possa ter algo a ver com as mortes de Amarildo, Douglas, Jean e tantos outros.

Sobre a questão, na Baderna Midiática:

Violência, mas para quê?

A ideologia do controle

O reverso da repressão

Severamente punidos: a mídia demoniza os black blocs

Toda rotina tem sua violência

Quem matamos Amarildo?

Um artigo de Matheus Pichonelli publicado na Carta Capital chama atenção para uma relação que precisa ser estabelecida e debatida, entre o cinema brasileiro recente e a legitimação da violência do Estado. O argumento geral é o de que a plateia que vibrou com as torturas e execuções praticadas em Tropa de Elite autorizou a barbárie que hoje se volta contra ela. O Brasil que aplaudiu de pé o personagem Capitão Nascimento teria optado por negar o papel civilizacional do Estado, pois legitimava a tortura, morte e desaparecimento de muitos, incluindo Amarildo de Souza, assassinado numa UPP durante sessão de choques elétricos e sufocamentos comandada – como no filme – por um oficial do Bope.

Ainda que concordemos com alguns pontos dessa leitura, é preciso questionar outros tantos, retomando assim o intenso debate ocorrido em diversos meios – ligados ao cinema, à militância política, às universidades, etc. – na época do lançamento de Tropa de Elite. O momento atual, em que se discutem mudanças na política de segurança pública e o papel da mídia na criminalização das lutas sociais, impõe esse debate. A presente crítica ao artigo da Carta Capital (que teve o mérito de recolocar a questão) é nossa primeira contribuição nesse sentido. Ela se divide em três partes, sendo a primeira sobre a obra e sua recepção imediata (Por que os aplausos?), a segunda a respeito dos discursos sobre a violência urbana e seus lugares sociais (De onde vêm os aplausos?), a terceira sobre os pressupostos culturais que podem esvaziar uma crítica à violência estatal (Para quem são os aplausos?). A depender dos rumos deste debate, outros textos poderão ser elaborados num segundo momento.

Quem matamos Amarildo? Reflexões sobre cinema e violência no Brasil

 

Parte I – Por que os aplausos?

Tropa de Elite foi um fenômeno cinematográfico único no Brasil das últimas décadas. Sucesso absoluto de mercado (inclusive pirata), de crítica e de público, o filme invadiu a linguagem do cotidiano com os jargões do Capitão Nascimento, gerou intensos debates nos mais variados meios e polarizou posições políticas a respeito da violência estatal, dos direitos humanos, da guerra às drogas e de outros temas. Central naquele contexto era a discussão sobre as intencionalidades envolvidas na produção. Deixando de lado as visões ingênuas de que se tratava de um “retrato fiel e neutro da realidade” ou de “uma produção artística sem compromisso com seu contexto social” restavam duas posições diametralmente opostas: tropa de Elite era uma crítica ou uma legitimação dos métodos de tortura e extermínio nas favelas do Brasil.

Tanto na época quanto hoje – e apesar do que se possa dizer sobre Tropa de Elite 2 (2010) – a posição daqueles de nós que se envolveram em tal debate foi a de que o público que aplaudiu a tortura podia ter (e de fato tinha) muitos defeitos, mas não o de ser incapaz de compreender a obra. O que tinham diante dos olhos era um filme cuidadosamente construído para que a violência estatal (incluindo a tortura e o extermínio) gerassem aplausos.

Todas as opções estéticas e narrativas de Tropa de Elite se encaminham para o reconhecimento de uma figura de herói salvador e redentor no Capitão Nascimento e de uma instituição infalível e incorruptível no Bope. A narrativa a partir de um drama doméstico do narrador onisciente, ao estilo dos filmes policiais norte-americanos, produz uma identificação do espectador que poderia dar margem à crítica desde que em algum momento seus valores inabaláveis ou sua infalibilidade fossem colocadas em questão. Não é o caso, pois os discursos que se contrapõem ao do “herói” são tão toscos que levam à aversão imediata do expectador. No filme, o Bope é a única instituição não dominada pela corrupção, o que vale também para cada um de seus agentes. O “sistema” envolve moradores das favelas, policiais convencionais, universitários, todos estereotipados e estigmatizados como agentes da violência, sendo a “missão” do Bope “corrigir”, pela tortura e extermínio, os males que essas pessoas causam.

Não por acaso, no auge do sucesso de Tropa de Elite um coronel da PM se sentiu autorizado a definir sua instituição como “inseticida social”, pois a desumanização do inimigo estava garantida pela eficácia do discurso de Padilha (e evidentemente, por tudo que veio antes nesse sentido, especialmente na televisão). Naquela ocasião, disse o mesmo oficial que “quem não gosta do caveirão gosta de maconha, quem não gosta do caveirão, gosta de cocaína”. Baseando-se em Tropa de Elite, e não no cotidiano dos morros, seu discurso é verdadeiro: a reação à violência estatal só pode partir de quem tem interesses – como traficante, usuário ou policial corrupto – no narcotráfico. A constatação da relação entre mercado de drogas ilícitas e violência, que poderia servir para questionar a política de guerra às drogas, apenas a reforça. O filme se presta integralmente à defesa da indústria da morte garantida pela criminalização.

Como afirma outro texto que dá sequência a este debate (escrito por Antônio David e publicado no Viomundo), a capa da revista Veja que cristalizou a imagem do Capitão Nascimento como “primeiro super-herói brasileiro” incentiva uma política aberta de tortura e extermínio, num discurso que abusa de eufemismos (como chamar o personagem de “implacável com os bandidos”). Porém, boa parte do que diz aquele semanário sensacionalista encontra sustentação na própria narrativa do filme (sobretudo o primeiro, ainda que a capa tenha vindo na esteira do segundo).

Se uma revista sem nenhuma seriedade jornalística ou compromisso com a democracia criou um super-herói torturador de pobres e negros, seu trabalho foi facilitado por Padilha, que forneceu todas as peças e uma narrativa convincente para essa nova figura do Panteão Nacional – que, aliás, já contava com personagens históricos que cumpriram papéis semelhantes. (Um parênteses: Duque de Caxias, cultuado até hoje como patrono do Exército Brasileiro, se apresentava como “pacificador” diante dos “bandidos” do sertão do Maranhão, que nada mais eram que camponeses rebelados contra as arbitrariedades e o racismo do Estado. Tal como o Capitão Nascimento, ele os exterminou de forma “implacável” e pode legitimamente ser reconhecido como seu precursor.)

O discurso de Tropa de Elite, apropriado e adaptado (mas não inventado) pela mídia conservadora legitimou, como sabemos, as operações de guerra e a criação das UPPs no Rio de Janeiro. Os brasileiros se acostumaram a remakes de Tropa de Elite, com direito a rajadas disparadas de helicóptero e a defesas da tortura como método. Os aplausos continuam, pois o filme já ensinou que os tiros só atingem “bandidos” (nenhuma vítima executada pelo Capitão Nascimento é, como Amarildo, apenas morador do morro) e que a tortura é infalível e necessária (nenhuma vítima de tortura em Tropa de Elite é, como Amarildo, alguém sem envolvimento com o crime e, portanto, incapaz de revelar algo de “útil”).

Amarildo, a vítima-padrão do Bope, não existe em Tropa de Elite, pois os “homens de preto” são infalíveis e suas vítimas são “bandidos”.

O Caveirão, instrumento-padrão do Bope, também não existe em Tropa de Elite, pois os “homens de preto” são destemidos e não os covardes da vida real.

Tudo isso são opções narrativas e estéticas que tendem a provocar aplausos em um público já envolvido pelo discurso da mídia corporativa, que divide o mundo em “cidadãos de bem” e “bandidos”. Nesse discurso, a decisão sobre a vida e a morte, nas mãos dos “infalíveis” do Bope, tem por critério o caráter bom ou mau do indivíduo e não os cortes de classe e raça que os dados sobre violência no Brasil demonstram fartamente. Ao contrário do que afirma o texto de Carta Capital, ser alvo ou não da violência estatal não é questão de sorte e o fato de o primeiro Tropa de Elite terminar com a arma apontada para a plateia não gera qualquer identificação com quem está na mira. Voltaremos a isso num outro momento.

Não, estas armas não estão apontadas para todos os brasileiros.

Não, estas armas não estão apontadas para todos os brasileiros.

Considerando essas e outras opções, é nítido que Padilha desejou aqueles aplausos, ainda que provavelmente não pudesse prever o quanto seria bem sucedido. Pode ter desejado por convicção ideológica (lembremos que o diretor é colaborador do think tank conservador Instituto Millenium) ou por esses aplausos representarem um maior sucesso para sua mercadoria. Mas é ingenuidade crer que não esperasse que sua narrativa fosse apropriada para uma maior legitimação da violência estatal. É difícil imaginar que um diretor de reconhecida competência e capacidade técnica e artística como é José Padilha (talento reconhecido até por Hollywood, que colocou em suas mãos o novo Robocop) tenha feito tantas opções coerentes sem querer.

Mas o leitor pode perguntar: e Tropa de Elite 2? Ele não nega essa intencionalidade ao mostrar tanto os podres da política de segurança quanto as boas intenções de um crítico dos massacres nas favelas? Sem dúvida há uma mudança de perspectiva e uma narrativa mais complexa nessa sequência, mas o essencial já estava dito e podia ser pressuposto. A complexificação da narrativa vai no sentido de integrar a corrupção política à violência urbana. A legitimidade da violência estatal é pressuposta, o problema está na “corrupção”. Afinal, que dizer da cena em que Mathias, um digno oficial do Bope é assassinado ao tentar cumprir seu dever de policial honesto, torturando um “bandido”? A identificação do público deve ser, mais uma vez, com quem tortura para fazer o bem e que, neste caso, é vítima de quem executa para fazer o mal.

Tropa de Elite 2 de fato é um filme crítico à política de segurança no Brasil, mas trata-se da nossa conhecida crítica moral à corrupção e não da necessária e urgente crítica à violência do Estado contra sua população. De resto, com o primeiro Tropa de Elite, Amarildo já estava na conta do Padilha – como estava na de muitas outras pessoas, mas não na de um genérico “Brasil” como afirma o texto da Carta Capital. Como veremos a seguir, as responsabilidades pela violência estatal neste país não se dividem igualmente entre seus cidadãos.

O reverso da repressão: post-scriptum à ideologia do controle

Recentemente falamos da nova repressão do Estado, da caça aos Black Blocs e da ampliação das formas de controle sobre todos os manifestantes, o que ficara evidente com a determinação de fichar todo e qualquer mascarado nos protestos de 7 de setembro. Mas temos que falar também da outra face desse baile de máscaras. Afinal, o que explica que, ao mesmo tempo em que essa repressão toma corpo, tenhamos visto surgir, um dia antes dos protestos, as mais estranhas manifestações de “apoio” aos “mascarados”? Financiado por cubocards, Caetano Veloso fez um apelo singelo junto ao Mídia Ninja, e tirou fotos encapuzado. Em outro vídeo, lançado por sub-celebridades com o título de “Força da Nação”, brancos de branco se fantasiam de Guy Fawkes ao som de um jingle de estilo publicitário. A mensagem de todos era clara: de máscara no rosto, vamos todos para a rua no 7 de setembro para “mudar esse país”. O que motiva esse apoio das vozes do status quo? A mão que bate, também acaricia?

 

Então quer dizer que o senhor apoia o movimento das ruas? Aham....

Então quer dizer que o senhor Caetano apoia o movimento das ruas? Aham….

 

Acontece que nem só de repressão vive a dominação. Vemos aí as duas faces do poder, que pode ser negativo ou positivo, reprimir a liberdade ou produzir a servidão. Em Maio de 68 um pequeno cartaz, perdido em meio a slogans mais “descolados”, avisava: “Vigilância: os deturpadores estão entre nós”. O aviso valia antes de 68 e vale ainda hoje. Toda mobilização popular que traz a possibilidade de um mundo mais justo deve enfrentar dois inimigos: de um lado, a repressão violenta, e de outro, a deturpação de seus interesses.

Como funciona a deturpação? Grupos conservadores – ou seja, grupos cujo objetivo é manter a desigualdade – se apropriam de símbolos dos movimentos de contestação, propõem falsas mudanças e atacam bodes expiatórios. O caso extremo e mais conhecido é, sem duvida, o nazismo. O partido de Hitler se apropriou do léxico socialista, e desviou-o de sua reivindicação anticapitalista e internacionalista, culpando os judeus pela desigualdade e promovendo o nacionalismo militarista que culminou na Segunda Guerra.

Mas, para além desse caso extremo, a mesma disputa se repete a cada explosão popular. É essa a luta que estamos travando desde junho. Todos se lembram como a mídia teve de alterar sua posição ao longo das jornadas de junho. Inicialmente clamava, como de costume, pela repressão. Quando se tornou claro que a repressão não poderia suprimir a revolta, lançou-se mão da deturpação. O meia culpa de Arnaldo Jabor foi o exemplo mais claro. Ao mudar de posição quanto à repressão, o fantoche do “Instituto Millenium” tentou impor qual deveria ser a pauta de reivindicações do povo que estava na rua. Inventou-se, então, uma falsa mudança: derrubar a PEC37, “a lei da impunidade”. Embora se tratasse apenas de uma regulamentação técnica das atribuições do Ministério Público e da Polícia Federal, não esclarecida na constituição de 1988, ela foi vendida como o emblema da “luta contra a corrupção”. Quando derrubada, foi alardeada pelo cartel midiático como uma grande “mudança”. Mas como derrubar uma emenda constitucional pode ser considerado uma mudança? Se não se aprova uma emenda, a constituição continua a mesma; logo, tudo fica como era antes! A falácia da “PEC37” é um exemplo quase didático de deturpação, de como “mudar tudo para que tudo fique como está”.

Mas se a PEC37 conseguiu atingir as ruas, isso não se deveu apenas ao cartel midiático. Deveu-se, sobretudo, ao roubo de símbolos e métodos do movimento de contestação. Quem não se lembra do vídeo das “5 causas”, apresentado como produzido pelo Anonymous (e depois desmentido por seu canal no Youtube)? O Anonymous tem se tornado a ponta de lança da deturpação. Por apregoar a descentralização e o anonimato, o Anonymous se tornou presa das mais freqüentes usurpações. A última delas ocorreu ontem: “o maior protesto da história do Brasil”. O protesto convocado para o 7 de Setembro possuía uma pauta muito semelhante àquela das “5 causas”: elencava uma série de “projetos” (PECs e PLs), com um linguajar técnico que dá aparência de seriedade (como no programa eleitoral de qualquer político medíocre!), e que não tocam em nada a vida cotidiana da população. Não se trata de questões que emergem do cotidiano, como a luta pelo transporte público que motivou os protestos de junho. A redução da tarifa toca muito concretamente a vida de cada um, e graças aos protestos convocados pelo MPL, no dia 19 de junho todos os habitantes das metrópoles sentiram em seus bolsos o efeito da mobilização popular. Além disso, a pauta do “maior protesto da história” não fazia nenhuma referência à desigualdade social que reina nesse país há séculos. Ao invés disso, ataca os “mensaleiros” e a “corrupção”, como se achássemos aí a verdadeira razão dos problemas sociais no Brasil.

A “corrupção” é hoje a bandeira da falsa luta. Originalmente uma bandeira da esquerda, ela também foi deturpada pela reação conservadora. Tornou-se hoje um modo de ocultar os verdadeiros antagonismos. Dizer que não há dinheiro para a educação e a saúde porque há políticos demais, ou porque esses políticos gastam o dinheiro público com seus altos salários e auxílios, é uma forma de desviar nossa atenção da verdadeira corrupção do Estado: aquela de servir aos grandes interesses econômicos e privatistas em detrimento do bem estar da população. Se os direitos básicos não são garantidos, isso se deve à privatização desses direitos, que foram entregues ao setor privado para especulação e lucro. Nesse sentido, a luta contra as máfias do transporte é uma luta muito mais eficaz contra a corrupção. E o massacre do Pinheirinho, um exemplo mil vezes mais revoltante de corrupção do que qualquer “escândalo” parlamentar.

Repressão e deturpação são assim as duas faces de uma mesma moeda e, mais uma vez, andam juntas para sufocar a luta anticapitalista. Mas a julgar pelos acontecimentos de 7 de Setembro, não estão conseguindo. Não é sempre que a história se repete como farsa. O “maior protesto da história do Brasil”, tentativa de simulacro conservador das jornadas de junho – estas sim a maior onda de protestos da historia do país – não aconteceu. E em oposição aos mascarados de branco e aos mascarados embandeirados, os brasileiros “com orgulho” e “sem violência” que formam o tímido exército da deturpação, impuseram-se os mascarados de preto, aqueles caçados pela repressão, com antipatriotas que interromperam os desfiles militares, antinacionalistas que queimaram bandeiras, anticapitalistas que atacaram os símbolos do capital financeiro e da mídia.

“Eu errei”. A meia culpa da mídia.

“Eu errei”. Eis um belo subterfúgio, uma grande aposta na facilidade de manipulação da memória alheia.

13 de junho de 2013: Depois de três protestos em São Paulo contra o aumento das tarifas do transporte público, caracterizados seguidamente na grande mídia como ações de “vândalos, baderneiros, rebeldes de classe média sem causa” etc, milhares de pessoas saem novamenente às ruas da capital paulistana para protestar pela contra o aumento de R$0,20 nas tarifas. Imaginando estarem protegidos pela opinião pública que, afinal de contas, eles próprios vêm historicamente pretendendo manipular em favor de seus interesses, grandes veículos de imprensa armaram o circo em meio aos manifestantes, buscando talvez um melhor ângulo para fotografar e filmar os “atos de vandalismo, baderna, etc” dos últimos. Deste ímpeto à desligitimação dos manifestantes, alguns fatos foram, ao que parece, ilustrativos:

Em um programa ao vivo sobre casos de polícia, transmitido em simultâneo à manifestação, o âncora lança uma enquete cínica aos telespectadores: “Você é a favor de protesto com baderna?” O resultado deixou o âncora em uma das saias justas mais ridículas da história recente da TV brasileira – a maioria respondeu que sim, é a favor de protesto com baderna. A saída usada pelo jornalista em questão: um “eu errei” velado, tão cínico quanto a enquete, e encoberto por um ufanismo nacionalista dirigido aos manifestantes que, certamente, não estavam fazendo aquela baderna pelos mesmos motivos que talvez levassem o jornalista à rua, ou – o que é mais provável – a um jantar com autoridades.

Manifestação com baderna? Sim, oras.

Manifestação com baderna? Sim, oras. (clique na imagem para ver o video)

 Ao longo da manifestação, multiplicavam-se os relatos da repressão violenta da polícia sobre os manifestantes, sob orientação direta do governador do estado, o qual dias antes havia caracterizado as manifestações como “casos de polícia”, igualzinho fizeram o programa de TV acima e editoriais de jornais de grande circulação. Como cães de guarda liberados de suas focinheiras, os policiais aproveitaram a deixa e descarregaram balas de borracha, sprays de pimenta, gás lacrimogêneo, entre outros brinquedos de cachorro bravo, sobre quem quer que estivesse pela frente. Numa dessas, aliás, em várias dessas, os alvos foram funcionários daqueles mesmos jornais que, dias antes, opunham os manifestantes – “vândalos e baderneiros” – aos policiais – “heróis da ordem pública”. Rapidamente os “vândalos e baderneiros” se tornaram heróis, e os antes “heróis” voltaram a ser só polícia mesmo.

 Por último, no mesmo dia, um pouco mais à noite (portanto, um pouco atrasado em relação aos acontecimentos do dia), o Jornal Nacional, programa de notícias da maior emissora de TV brasileira, abre espaço pra um discurso do guru intelectual das nossas classes dominantes e anencéfalas, Arnaldo Jabor. Alheio ao que se passava nas ruas, em 1 minuto e meio o orador da emissora diz exatamente tudo aquilo que se esperava sair dele:

 “A grande maioria dos manifestantes no Movimento Passe Livre, são filhos de classe média, isso é visível. Ali, não haviam pobres que precisassem daqueles vinténs, não. Os mais pobres, ali, eram os policiais apedrejados, ameaçados com coquetéis molotov, que ganham muito mal. No fundo, tudo é uma imensa ignorância política. É burrice misturada a um rancor sem rumo.” Etc etc etc

Se tivesse dito isso um dia antes poderia fazer como seus colegas, editores da Folha de São Paulo, ou o Estadão: fingir que nunca disse nada e confiar no esquecimento. Como não foi este o caso, lançou mão de um conhecido recurso: “Eu errei”.

Mais de dois meses depois, em meio ao rebuliço gerado pela vinda de médicos estrangeiros, em especial os cubanos, para o Brasil, uma jornalista do Rio Grande do Norte publica o seguinte comentário em seu perfil na rede social:

 “Me perdoem se for preconceito, mas essas medicas cubanas tem uma Cara de empregada domestica. Será que São medicas Mesmo??? Afe que terrível. Medico, geralmente, tem postura, tem cara de medico, se impõe a partir da aparência….. Coitada da nossa população. Será que eles entendem de dengue? E febre amarela? Deus proteja O nosso Povo !”

(a jornalista Micheline Borges acaba de mostrar que o “absurdo” caricaturado em forma de comédia neste vídeo é muito mais real do que a gente pode imaginar)

Micheline Borges, a jornalista aí de cima, é um peixe muito menor do que seus colegas de profissão forçados a se desculpar pelo que disseram sobre as manifestações de junho, e talvez nunca ouvíssemos falar desta figura desprezível não fosse pelo seu igualmente desprezível comentário. Porém, a repercussão inesperada deste último obrigou-a a fazer uso do bom e velho “eu errei”.

Por último mas não menos importante, na edição digital do dia 31 de agosto de 2013, o jornal O Globo publicou um texto no qual faz uma espécie de mea culpa pelo apoio ao golpe militar de 1964. O texto, escrito por uma necessidade dupla do jornal (o lançamento de um certo Projeto Memória, que ganharia ares de fajuto caso não memorasse este fato, e as recentes manifestações, que atingiram de maneira particular a empresa de comunicação da família Marinho com o mote “a verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”), procura ao mesmo tempo assumir um fato já amplamente conhecido e justificar o “erro”, dando a impressão de que, à época, não teria tido outra escolha a não ser apoiar o golpe.

Não se trata de um procedimento exclusivo da corporação: nos três outros casos mencionados acima ocorreu exatamente o mesmo. Da mesma forma, em todos eles algumas coisas não ficaram explicadas.

Datena e o programa de TV que apresenta não deixaram explícitos os motivos que os levaram a retratar as manifestações como casos de polícia – isso dá audiência, e agrada seus anunciantes. Aparentemente, seus telespectadores não pensavam o mesmo, e o “erro” aí teria sido insistir na posição anterior. Daí o “eu errei”.

Jabor é, além de comentarista do JN, um conhecido representante de um certo Instituto Millenium, uma espécie de centro de difusão de ideias liberais financiado por algumas pessoas e grupos empresariais de bastante poder no Brasil (Grupo Abril, Gerdau, jornal Estadão, etc). Como tal, usa o espaço que a emissora o concede para pôr a publico algumas das ideias defendidas pelos seus colegas de instituto. Não à toa, ao reconhecer que “errou”, não deixou de frisar a opinião de que as manifestações deveriam se voltar “ao que realmente importa”. Ou seja, ao que realmente importa ao Grupo Abril, à Gerdau, ao Estadão, etc, e 20 centavos a mais na passagem do ônibus de fato não cumpre este requisito.

Micheline Borges é uma jornalista de classe média, pele branca, cabelos loiros, de certa forma estudada…gente de boa família. Isso de maneira alguma justifica seu comentário, mas ajuda a explicá-lo. Em uma sociedade predominantemente negra e “com cara de doméstica”, mas onde gente como a dona Micheline detém uma série de prerrogativas sociais fundadas no histórico de exploração desta mesma gente “com cara de doméstica”, a possibilidade de ascenção social desta gente “com cara de doméstica” representa um grave perigo à ordem social, que mantém gente como a jornalista potiguar num pedestal sobre toda essa gente “com cara de doméstica”. Seu pedido de desculpas fez apenas reiterar o que havia dito anteriormente: “esta é minha opinião, vocês devem respeitá-la”.

A Globo…bom, a Globo tentou fazer do erro um não-erro. Considerou errado apoiar o golpe, mas não lucrar bilhões com este apoio. Defendeu a democracia como “valor absoluto”, mas seu monopólio sobre os meios de comunicação não é exatamente democrático. Disse que errou, mas que foi levada ao erro. Enfim, como disse alguém em outro blog, fez um “meia culpa”.

Nada contra assumir um erro, muito pelo contrário. A questão é como e por qual motivo isso é feito – como um real reconhecimento de uma opinião ou de uma atitude errada ou como forma de manipular a memória alheia em seu favor e de dissimular objetivos, sem precisar tocar em nenhum ponto fundamental do “erro”. Estes quatro casos são exemplares desta segunda via, mas não seria de se esperar coisa diferente. Afinal, é possível assumir como “errada” uma posição perfeitamente coerente com os interesses daquele que “errou”?

A ideologia do controle

Há apenas alguns dias o Baderna Midiática difundiu um vídeo intitulado “Severamente Punidos” no qual antecipava as consequências que se poderiam esperar da intensa campanha midiática contra os Black Blocs. O paralelo com o que acontecera em 2001 em Gênova servia de alerta: a apresentação dos Black Blocs como usurpadores violentos das manifestações, como vândalos incontroláveis, preparava o campo para uma repressão desmesurada, com o desrespeito de normas legais e o uso abusivo da violência policial. E, mais importante ainda, essa repressão não se limitaria aos vilões declarados, mas abrangeria todas as práticas de contestação, “pacíficas” ou não. Um massacre midiático antecipa sempre um massacre real, dizíamos. Esse massacre já começou.

A prisão dos administradores da página do Black Bloc RJ foi feito de maneira autoritária e ilegal por par parte do Departamento de Repressão a Crimes Informáticos (DRCI) – mas que pelo modo com que vem agindo merece guardar apenas a primeira parte do nome. Como pode ser considerado legal que pessoas que não foram flagradas cometendo nenhum “ato de violência” e nenhum “ato de vandalismo” sejam presas em suas próprias casas e imputadas por “formação de quadrilha”? Como se não bastasse o sigilo informático ser quebrado sem justificativa válida, a prisão foi logo completada pelos típicos procedimentos de incriminação da polícia. Os administradores da página são agora apresentados como a encarnação do Mal: não são apenas violentos, mas são também “corruptores de menores”, “pedófilos” e “maconheiros” ! Mas alguém consegue explicar porque a DRCI agiu de maneira tão contundente contra os Black Blocs, apresentando como prova de incriminação uma simples postagem na qual se ensinava a construir um “ouriço”, mas parece não se importar com as diversas páginas e publicações de conteúdo abertamente racista e filo-nazista?

Na verdade, como já havíamos dito, os Black Blocs são apenas o bode expiatório que serve para justificar um aparato repressivo geral. A propaganda do terrorismo e da violência é a ladainha que legitima a ilegalidade do Estado, desde que esse existe. E o Estado do Rio de Janeiro é um Estado de Exceção declarado desde a criação da “Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas”. A Comissão é a prova de que a repressão não se limita aos Black Blocs ou a nenhum outro grupo de “manifestantes violentos”. A recente determinação da “Ceiv” de que todos os “mascarados” serão fichados nas manifestações é provavelmente um dos atos “legais” mais inconstitucionais da história do Brasil pós-ditadura. Trata-se de fichar como criminosos pessoas que não cometeram crime nenhum. Será que ainda temos que lembrar o quanto é hipócrita um Estado que extermina impunemente nas favelas ter a cara de pau de dizer que violência é quebrar vitrines? Não bastando, ainda querem transformar manifestante mascarado em criminoso, pelo simples ato de usar máscaras (ainda estamos na terra do carnaval?). Fica evidente que o objetivo dessa repressão é transformar todo e qualquer manifestante em criminoso pelo simples ato de não se conformar a uma sociedade injusta e desigual.

Black Bloc em manifestação no Rio de Janeiro

Black Bloc em manifestação no Rio de Janeiro

E não nos iludamos sobre a possibilidade de traçar linhas de demarcação entre o bom e o mau protesto. O jornal “O Estado de São Paulo” – ainda mais que o “Globo” e seu falso mea culpa parece ter nostalgia dos tempos em que apoiava a ditadura. Em editorial de ontem , o “Estadão” saúda o autoritarismo da “Ceiv” e sua política de criminalização, por “combater o vandalismo”, ao mesmo passo em que saúda a ação da justiça de São José dos Campos que impediu uma manifestação do Sindicato dos Metalúrgicos de interromper o tráfego na Rodovia Presidente Dutra – ressuscitando o falacioso argumento de que as manifestações “perturbam o tráfego”, quando todos sabem que o trânsito das grandes metrópoles brasileiras não precisa de ajuda para ser perturbado: para isso já basta a espoliação do transporte público levado a cabo pelas diversas máfias dos transportes. Na argumentação do “Estadão”, fica claro como se articula a ideologia do controle. O combate ao vandalismo se conjuga rapidamente ao combate à toda e qualquer mobilização social, mesmo as mais tradicionais, como as sindicais. Nessa ótica, toda forma de reivindicação que ultrapasse o estreito limite da política parlamentar existente – com seus inúmeros resquícios legais da recente ditadura – deve ser “severamente punido”.

Severamente punidos – a mídia demoniza o Black Block

Corpo de Carlo Giuliani, militante assassinado com dois tiros a queima roupa pela polícia de Gênova

Corpo de Carlo Giuliani, militante assassinado com dois tiros a queima roupa pela polícia de Gênova, em 2001. Clique na foto para assistir o video.

O vídeo denuncia a campanha midiática contra o movimento Black Block como uma estratégia para criminalizar os protestos e incentivar a repressão policial. Lembramos aqui que o mesmo aconteceu em Gênova em 2001. A campanha da mídia italiana contra os Black Blocks legitimou a repressão policial que resultou na morte de Carlo Giuliani, assassinado por um policial com dois tiros a queima-roupa durante uma manifestação, e no massacre da escola Diaz, quando uma operação envolvendo mais de 300 policiais deixou 82 feridos, 63 hospitalizados e uma jovem em coma.

Um massacre midiático prepara sempre um massacre real. Violenta é a mídia!

Globo: a verdade é mais dura

Roberto Marinho e o ditador Figueiredo

Roberto Marinho e o ditador Figueiredo

A Globo pediu perdão por ter apoiado o golpe de 1964, mas esqueceu de dizer o quanto ela lucrou com ele. Seu apoio ao regime não foi uma questão de consciência ou de ética resultante de uma má avaliação política. Ela simplesmente ganhou mais concessões e com isso mais poder e dinheiro. Ela não optou torcer por um time que roubou, nem teve uma avaliação errada ao escolher um lado num conflito. Ela fez o que fez para ganhar dinheiro, é claro que com certa coincidência de valores entre ela e o lado escolhido.

Seria mais sincero dizer: “sim, apoiamos o regime militar, sim, a verdade é dura, mas assim é o sistema que defendemos, que é o capitalismo e não a democracia”. Nesse sistema, uns investem no seguro, outros no arriscado. A Globo preferiu investir no seguro para ter um retorno garantido, estável e lucrativo. Seu compromisso é, ainda hoje, com o próprio lucro e não com a democracia. Seu apoio aberto e sistemático à ditadura garantiu a construção de um império midiático. Garantiu também a perpetuação da própria ditadura e vem contribuindo para a preservação de suas piores heranças.

A verdade é ainda mais dura: a Globo cresceu graças a seu apoio à ditadura.

Enquanto houver o monopólio da mídia que a ditadura alimentou não haverá democracia.