Em seu novo livro, o escritor Eduardo Galeano documenta uma face menos conhecida de Winston Churchill, tido por herói nacional após liderar a Grã-Bretanha contra a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial. Trata-se de sua defesa do uso de armas químicas, que após as catástrofes que causaram na Europa durante a Primeira Guerra, tiveram seu uso restrito no continente.
Em 1919, ele afirmava: “Não consigo entender tantos melindres sobre o uso do gás. Estou muito a favor do uso do gás venenoso contra as tribos incivilizadas. Isso teria um bom efeito moral e difundiria um terror perdurável.”. Em 1937, quando a perspectiva de uma guerra contra os suprematistas “arianos” da Alemanha estava evidente, Churchill parecia não se diferenciar muito de seus inimigos: “Eu não admito que se tenha feito mal algum aos peles-vermelhas da América, nem aos negros da Austrália, quando uma raça mais forte, uma raça de qualidade, chegou e ocupou seu lugar.” Em ambos os casos, as defesas que Churchill faz de políticas de extermínio têm um alvo tão certo quanto amplo: o mundo não-branco, ou ao menos a parte desse mundo que não se organiza em Estados Nacionais soberanos reconhecidos como “civilizados”.
“Tribos incivilizadas”, “peles-vermelhas”, “negros da Austrália” são nomenclaturas que abarcam, cada uma delas, centenas ou milhares de povos, unificados apenas no vocabulário imperialista, ao lado de “bárbaros”, “selvagens”, “aborígenes”, “povos primitivos”, “raças inferiores”. Algumas dessas palavras caíram em desuso, enquanto outras se tornaram, não por acaso, metáforas para caracterizar – e deslegitimar – as lutas populares em geral. Familiar a todos nós, o termo “índio” foi também criado pelos colonizadores, definindo pessoas que se identificam segundo seus próprios termos. Assim como outros grupos explorados, oprimidos e massacrados pelo imperialismo, esses povos se apropriaram de um termo cunhado pelos opressores e com ele elaboraram uma identidade fruto das experiências de luta e resistência. É nesse sentido que se pode falar de uma luta indígena ou de uma consciência racial negra, por exemplo.
Mas retomemos a fala de Churchill, não para reivindicar a perda de seus status de herói (convenhamos que, independentemente desses discursos, ninguém que comanda um Estado que se impõe mundialmente pela violência mereceria este título), mas para tratar da questão dos armamentos e do extermínio. Como já foi dito, as armas químicas foram em grande parte proibidas na Europa após a Primeira Guerra Mundial e passaram, com toda razão, a ser vistas com horror pela cultura ocidental. No entanto, quanto mais se afastam das formas dominantes de organização dessa “cultura ocidental”, mais as pessoas podem ser alvos desse tipo particularmente terrível de violência sem que o agressor sofra consequências por isso. Países cujas populações se horrorizam diante das armas químicas, como os Estados Unidos, a França e Portugal, seguiram fazendo uso delas na África e na Ásia no pós-1945. O fato de que o napalm e o agente laranja se tornaram alvos de campanhas e mobilizações nos EUA após a Guerra do Vietnã foi excepcional, mas não o uso desses armamentos e de outras formas de extermínio em massa legitimados pela ideologia imperialista expressa por Churchill.
E o Brasil? Houve um massacre com armas químicas e biológicas no Brasil?
Um não, muitos! Eles ocorreram principalmente entre os anos 1960 e 1970, facilitados pela generalização do acesso a esses armamentos (muitos deles usados como agrotóxicos) e também pelo regime ditatorial que permitia um silenciamento mais fácil das vozes dissonantes. Trata-se do envenenamento da água de rios, da transmissão intencional de doenças (por exemplo jogando-se objetos contaminados de aviões), e ainda da utilização de armas que se tornaram tristemente célebres no Vietnã, como o napalm e o agente laranja. Em comum, quase todas as vítimas seriam definidas no vocabulário de Churchill como “tribos incivilizadas”, atacadas “quando uma raça mais forte, uma raça de qualidade, chegou e ocupou seu lugar”.
Em 1980 d. Tomás Baduíno afirmava que “como em quase toda a guerra o fim justifica os meios, nessa já foram usadas todas as armas: os cães, os laços, a Winchester 44, a metralhadora, o napalm, o arsênico, as roupas contaminadas com varíola, […]” além das armas jurídicas e ideológicas. O texto era o prefácio a denúncias sobre o massacre dos Nambikwara, que viviam na região do Guaporé, Mato Grosso, e que foram vítimas de agente laranja lançado por aviões de fazendeiros.
Se em quase todas as guerras os fins justificam os meios, a situação é mais grave no caso desta, de uma sociedade que incorporou profundamente a ideologia imperialista contra povos que considera “selvagens”. Mais grave não só pela brutal desigualdade bélica e tecnológica, que faz com que qualquer conflito se torne facilmente um massacre unilateral, mas também porque a justificação está pronta, está dada para uma população que por séculos interiorizou a ideia de que “índio” não é gente – ou de que é menos gente que os demais.
As amas químicas eram relativamente novas no momento do ataque aos Nambikwara, mas não os massacres ou a ideologia que os legitimam. Antes de contarem com a facilidade das armas de destruição em massa, genocidas do poder púbico ou privado usavam no Brasil outros artifícios para, nas palavras de Churchill, difundir “um terror perdurável” – como amarrar pessoas nas bocas de canhões ou desmembrá-las e espalhar as partes de seus corpos, por exemplo. Percorrendo a documentação oficial do governo de Mato Grosso no século XIX nos deparamos com referências a chacinas de indígenas narradas com o mesmo tom burocrático de quem fala da construção de uma ponte ou da redução de uma taxa de comércio. Que episódios como esses sejam pouco conhecidos e que tenha perdurado uma visão pacífica dos contatos interétnicos no Brasil é fruto da internalização da concepção que fundamentava a frase do estadista britânico. Como afirma Antonio Paulo Graça,,”não se exterminam, por séculos, nações, povos e culturas sem que, de alguma maneira, haja uma instância do imaginário que tolere o crime. Se a sociedade brasileira incorre no genocídio, desde sua fundação, e ainda hoje o reitera, é porque existe no imaginário um foro legitimador”.
Por sua vez, o “foro legitimador” pode se voltar contra aqueles que se têm por “civilizados” em oposição aos “selvagens”, mas que entram em rota de colisão com o Estado e o Capital – poderes estes que legitimamente podem reivindicar a ideologia do extermínio em massa. Vítimas da mesma violência que os índios conheciam há séculos, os guerrilheiros que combateram no Araguaia conheceram talvez antes mesmo dos indígenas brasileiros os horrores do napalm.
Combater o foro legitimador do extermínio indígena passa, antes de tudo, pelo reconhecimento do direito desses povos a terra e a autonomia na definição das formas como se relacionam com a sociedade nacional. Enquanto subordinarmos os direitos desses povos a interesses de quaisquer tipos, por mais legítimos que possam parecer, não estaremos fazendo mais que perpetuar os horrores feitos nos últimos séculos em nome da “civilização” que os comete.
A diferença entre dizer que os índios da Amazônia devem abrir espaço ao progresso e dizer, como Churchill, que não há mal algum em eliminar “raças inferiores” é uma diferença de tom, não de conteúdo.
O coletivo Baderna Midiática apoia a Mobilização Nacional Indígena e a luta contra a ofensiva ruralista expressa na PEC 215/00, PEC 237/13, PEC 038/99, PL 1610/96 e PLP 227/12.
Leitura recomendada, da qual retiramos muitas das informações acima: Victor Leonardi. Entre árvores e esquecimentos: história social nos sertões do Brasil. Brasília: Paralelo 15/UnB, 1996.