“Eu errei”. Eis um belo subterfúgio, uma grande aposta na facilidade de manipulação da memória alheia.
13 de junho de 2013: Depois de três protestos em São Paulo contra o aumento das tarifas do transporte público, caracterizados seguidamente na grande mídia como ações de “vândalos, baderneiros, rebeldes de classe média sem causa” etc, milhares de pessoas saem novamenente às ruas da capital paulistana para protestar pela contra o aumento de R$0,20 nas tarifas. Imaginando estarem protegidos pela opinião pública que, afinal de contas, eles próprios vêm historicamente pretendendo manipular em favor de seus interesses, grandes veículos de imprensa armaram o circo em meio aos manifestantes, buscando talvez um melhor ângulo para fotografar e filmar os “atos de vandalismo, baderna, etc” dos últimos. Deste ímpeto à desligitimação dos manifestantes, alguns fatos foram, ao que parece, ilustrativos:
Em um programa ao vivo sobre casos de polícia, transmitido em simultâneo à manifestação, o âncora lança uma enquete cínica aos telespectadores: “Você é a favor de protesto com baderna?” O resultado deixou o âncora em uma das saias justas mais ridículas da história recente da TV brasileira – a maioria respondeu que sim, é a favor de protesto com baderna. A saída usada pelo jornalista em questão: um “eu errei” velado, tão cínico quanto a enquete, e encoberto por um ufanismo nacionalista dirigido aos manifestantes que, certamente, não estavam fazendo aquela baderna pelos mesmos motivos que talvez levassem o jornalista à rua, ou – o que é mais provável – a um jantar com autoridades.
Ao longo da manifestação, multiplicavam-se os relatos da repressão violenta da polícia sobre os manifestantes, sob orientação direta do governador do estado, o qual dias antes havia caracterizado as manifestações como “casos de polícia”, igualzinho fizeram o programa de TV acima e editoriais de jornais de grande circulação. Como cães de guarda liberados de suas focinheiras, os policiais aproveitaram a deixa e descarregaram balas de borracha, sprays de pimenta, gás lacrimogêneo, entre outros brinquedos de cachorro bravo, sobre quem quer que estivesse pela frente. Numa dessas, aliás, em várias dessas, os alvos foram funcionários daqueles mesmos jornais que, dias antes, opunham os manifestantes – “vândalos e baderneiros” – aos policiais – “heróis da ordem pública”. Rapidamente os “vândalos e baderneiros” se tornaram heróis, e os antes “heróis” voltaram a ser só polícia mesmo.
Por último, no mesmo dia, um pouco mais à noite (portanto, um pouco atrasado em relação aos acontecimentos do dia), o Jornal Nacional, programa de notícias da maior emissora de TV brasileira, abre espaço pra um discurso do guru intelectual das nossas classes dominantes e anencéfalas, Arnaldo Jabor. Alheio ao que se passava nas ruas, em 1 minuto e meio o orador da emissora diz exatamente tudo aquilo que se esperava sair dele:
Se tivesse dito isso um dia antes poderia fazer como seus colegas, editores da Folha de São Paulo, ou o Estadão: fingir que nunca disse nada e confiar no esquecimento. Como não foi este o caso, lançou mão de um conhecido recurso: “Eu errei”.
Mais de dois meses depois, em meio ao rebuliço gerado pela vinda de médicos estrangeiros, em especial os cubanos, para o Brasil, uma jornalista do Rio Grande do Norte publica o seguinte comentário em seu perfil na rede social:
“Me perdoem se for preconceito, mas essas medicas cubanas tem uma Cara de empregada domestica. Será que São medicas Mesmo??? Afe que terrível. Medico, geralmente, tem postura, tem cara de medico, se impõe a partir da aparência….. Coitada da nossa população. Será que eles entendem de dengue? E febre amarela? Deus proteja O nosso Povo !”
(a jornalista Micheline Borges acaba de mostrar que o “absurdo” caricaturado em forma de comédia neste vídeo é muito mais real do que a gente pode imaginar)
Micheline Borges, a jornalista aí de cima, é um peixe muito menor do que seus colegas de profissão forçados a se desculpar pelo que disseram sobre as manifestações de junho, e talvez nunca ouvíssemos falar desta figura desprezível não fosse pelo seu igualmente desprezível comentário. Porém, a repercussão inesperada deste último obrigou-a a fazer uso do bom e velho “eu errei”.
Por último mas não menos importante, na edição digital do dia 31 de agosto de 2013, o jornal O Globo publicou um texto no qual faz uma espécie de mea culpa pelo apoio ao golpe militar de 1964. O texto, escrito por uma necessidade dupla do jornal (o lançamento de um certo Projeto Memória, que ganharia ares de fajuto caso não memorasse este fato, e as recentes manifestações, que atingiram de maneira particular a empresa de comunicação da família Marinho com o mote “a verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”), procura ao mesmo tempo assumir um fato já amplamente conhecido e justificar o “erro”, dando a impressão de que, à época, não teria tido outra escolha a não ser apoiar o golpe.
Não se trata de um procedimento exclusivo da corporação: nos três outros casos mencionados acima ocorreu exatamente o mesmo. Da mesma forma, em todos eles algumas coisas não ficaram explicadas.
Datena e o programa de TV que apresenta não deixaram explícitos os motivos que os levaram a retratar as manifestações como casos de polícia – isso dá audiência, e agrada seus anunciantes. Aparentemente, seus telespectadores não pensavam o mesmo, e o “erro” aí teria sido insistir na posição anterior. Daí o “eu errei”.
Jabor é, além de comentarista do JN, um conhecido representante de um certo Instituto Millenium, uma espécie de centro de difusão de ideias liberais financiado por algumas pessoas e grupos empresariais de bastante poder no Brasil (Grupo Abril, Gerdau, jornal Estadão, etc). Como tal, usa o espaço que a emissora o concede para pôr a publico algumas das ideias defendidas pelos seus colegas de instituto. Não à toa, ao reconhecer que “errou”, não deixou de frisar a opinião de que as manifestações deveriam se voltar “ao que realmente importa”. Ou seja, ao que realmente importa ao Grupo Abril, à Gerdau, ao Estadão, etc, e 20 centavos a mais na passagem do ônibus de fato não cumpre este requisito.
Micheline Borges é uma jornalista de classe média, pele branca, cabelos loiros, de certa forma estudada…gente de boa família. Isso de maneira alguma justifica seu comentário, mas ajuda a explicá-lo. Em uma sociedade predominantemente negra e “com cara de doméstica”, mas onde gente como a dona Micheline detém uma série de prerrogativas sociais fundadas no histórico de exploração desta mesma gente “com cara de doméstica”, a possibilidade de ascenção social desta gente “com cara de doméstica” representa um grave perigo à ordem social, que mantém gente como a jornalista potiguar num pedestal sobre toda essa gente “com cara de doméstica”. Seu pedido de desculpas fez apenas reiterar o que havia dito anteriormente: “esta é minha opinião, vocês devem respeitá-la”.
A Globo…bom, a Globo tentou fazer do erro um não-erro. Considerou errado apoiar o golpe, mas não lucrar bilhões com este apoio. Defendeu a democracia como “valor absoluto”, mas seu monopólio sobre os meios de comunicação não é exatamente democrático. Disse que errou, mas que foi levada ao erro. Enfim, como disse alguém em outro blog, fez um “meia culpa”.
Nada contra assumir um erro, muito pelo contrário. A questão é como e por qual motivo isso é feito – como um real reconhecimento de uma opinião ou de uma atitude errada ou como forma de manipular a memória alheia em seu favor e de dissimular objetivos, sem precisar tocar em nenhum ponto fundamental do “erro”. Estes quatro casos são exemplares desta segunda via, mas não seria de se esperar coisa diferente. Afinal, é possível assumir como “errada” uma posição perfeitamente coerente com os interesses daquele que “errou”?