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Eles também cantaram um dia: 10 canções, 10 revoluções

Eu tenho certeza: eles também cantaram um dia!
Chico Science

Desde junho dezenas de músicas foram lembradas ou criadas por inspiração da experiência viva da tomada das ruas em todo o país. O Hino à Rua, feito pelo coletivo Baderna Midiática, é apenas uma dentre outras canções, como esta e esta. É claro que também surgiram produções puramente mercadológicas, sem qualquer relação com o movimento que tomou as ruas, ou ainda aquelas que, bancadas pela grande mídia, procuram arrancar das manifestações seu espírito contestador. Mas existe hoje, como existiu em todos os momentos como este, a resistência do movimento popular contra os que querem impor suas bandeiras, seus símbolos e suas canções.

O que importa lembrar é que desde que há revoluções e insurreições populares as canções estão presentes a animar a luta. Uma mostra disso está na lista abaixo, na qual incluímos 10 músicas acompanhadas por uma breve apresentação e pela letra traduzida para o português. A seleção inclui apenas canções que são inseparáveis de momentos revolucionários ou insurrecionais, seja porque foram feitas em meio às batalhas, seja porque inspiraram os que lutaram. Começamos nosso percurso na Insurreição de Istambul, ocorrida pouco antes da tomada das ruas no Brasil, e o concluímos mais de 200 anos atrás. A lista poderia ser muito maior, pois ao que parece não há revolução que não se expresse musicalmente. 

Tem outras sugestões para a lista? Deixe seu comentário!

1. Tencere tava havasi (Insurreição de Istambul, 2013)

Uma das belíssimas canções que surgiram dos protestos recentes em Istambul, Tencere tava havasi (“O som das panelas e frigideiras”) foi composta e gravada numa performance de rua pelo grupo Kardeş Türküler. Formado há 20 anos por músicos dos mais diversos grupos étnicos da Turquia (como curdos, árabes e armênios), o grupo sempre teve como objetivo a defesa da diversidade através da música. Em meio à dura repressão do primeiro semestre de 2013, ofereceram aos manifestantes de Istambul e ao mundo uma canção maravilhosa.

Tencere tava havasi trata do movimento que teve início como resistência à derrubada de um parque para a construção de um shopping center. Além do ataque a um espaço frequentado pela juventude, o movimento reagia a uma série de leis arbitrárias que em parte estavam ligadas à “bancada islâmica” (a “bancada evangélica” deles), como é o caso da proibição de venda de bebida apos as 22h. Por isso a música diz que “eles venderam nossos bosques” e também critica “decretos e ordens obstinadas”. O refrão “Venha devagar, o chão está molhado” faz referência a uma das principais armas usadas pela repressão: os jatos de água lançados para derrubar as multidões.

No vídeo, chama atenção também a referência aos pinguins. A razão disso é interessante. No dia em que as manifestações cresceram tanto que não dava mais para a mídia ignorá-las, diversas emissoras cancelaram os telejornais para não ter que mostrar que o país estava tomado por uma insurreição popular. Um deles, a CNN-Turquia decidiu colocou um documentário sobre a vida dos pinguins no lugar do telejornal. A atitude da midia virou piada e os manifestantes passaram a dizer que eles eram os pinguins, ou a resistência da Antártida.

O som das panelas e frigideiras
Chega de declarações inconsistentes e proibições
Chega de decretos e ordens obstinadas
Oh não, já tivemos o suficiente
Oh não, nós realmente estamos fartos
Quanta arrogância! Quanto ódio!
Venha devagar, o chão está molhado

Eles não podiam vender suas sombras
Então ele venderam os bosques
Eles derrubaram, fecharam cinemas e praças

Abrigado em shopping centers
Eu não me sinto como se atravessasse esta ponte
O que aconteceu com nossa cidade?
Está repleta de edifícios

Oh, amada Istambul
Deitada adoecida
Sua beleza arruinada
Quanta desgraça, quanto gás, que luto é este?
Tudo está derrubado pelo chão
O que aconteceu com você?
Me diga, me diga!
Não quero você deste jeito.
Não, eu não quero

Oh não, já tivemos o suficiente
Oh não, nós realmente estamos fartos
Quanta arrogância! Quanto ódio!
Venha devagar, o chão está molhado

2. Kelmti Horra (Insurreição Tunisina, 2011-2012)

A canção Kelmti Horra (“Minha palavra é livre”) foi composta anos antes da insurreição que eclodiu na Tunísia nos últimos dias de 2011. Porém, foi em meio aos protestos que a música se tornou conhecida, principalmente através de um vídeo de Emel Mathlouthi cantando em meio aos manifestantes nas ruas de Túnis. Apesar de não ser a autora da canção, ela já a interpretava desde antes da insurreição. Cantora de protesto, Emel Mathlouthi teve suas músicas proibidas na Tunísia em 2008, quando resolveu se mudar para a França. Retornou a seu país em meio à revolta de 2011.

A Insurreição Tunisina teve início em 17 de dezembro, quando o vendedor ambulante Mohamed Bouazizi ateou fogo ao próprio corpo, num ato de desespero após ter suas mercadorias confiscadas pelo governo. Humilhado pelas autoridades, ele ainda sofreu extorsão ao tentar reaver o que lhe foi tomado ilegalmente (pois não havia proibição do tipo de comércio que ele fazia). Emel Mathlouthi também dedicou uma música a Bouazizi, adaptada de uma canção em tributo a dois anarquistas executados nos Estados Unidos em 1927.

Vivendo há muito sob um governo autoritário, a população reagiu após a autoimolação de Bouazizi, exigindo a queda do presidente Ben Ali, que foi forçado a deixar o poder e convocar eleições menos de um mês após o início dos protestos.

Minha palavra é livre

Eu sou daqueles que são livres e nunca temem
Eu sou os segredos que nunca morrerão
Eu sou a voz daqueles que não cederiam
Eu sou o sentido em meio ao caos

Eu sou o direito do oprimido
Que é vendido por esses cachorros (pessoas que são cachorros)
Que roubam as pessoas do seu pão de cada dia
E batem com a porta na cara das idéias

Eu sou aqueles que são livres e nunca temem
Eu sou os segredos que nunca morrerão
Eu sou a voz daqueles que não cederiam
Eu sou livre e minha palavra é livre
Eu sou livre e minha palavra é livre

Não se esqueça do preço do pão
E não se esqueça a causa da nossa miséria
E não se esqueça de quem nos traiu no momento de necessidade

Eu sou daqueles que são livres e nunca temem
Eu sou os segredos que nunca morrerão
Eu sou a voz daqueles que não cederiam
Eu sou o segredo da rosa vermelha
Daquela que colore os anos amados
Que perfuma os rios enterrados
E que se espalhou feito fogo
Convocando os que são livres

E sou uma estrela brilhando na escuridão
Eu sou um espinho na garganta do opressor
Eu sou um vento tocado pelo fogo
Eu sou a alma daqueles que não estão esquecidos
Eu sou a voz daqueles que não morreram

Vamos fazer barro do aço
E construir com ele um novo amor
Que se torna passáros
Que se torna um novo país/lar
Que se torna vento e chuva

Eu sou todas as pessoas livres do mundo juntas
Eu sou como uma bala

3. El pueblo unido, jamás será vencido (Luta popular e resistência ao golpe no Chile, 1973)

 “O povo unido jamais será vencido”: traduzido para os mais diversos idiomas, este é certamente um dos gritos mais presentes em manifestações no mundo todo. A frase, inspirada no discurso de um líder político colombiano, era um dos lemas da campanha da Unidade Popular no Chile, responsável por levar Salvador Allende ao poder e, com ele, a organização que vinha sendo construída há anos pelo povo chileno. A melodia é do compositor Sergio Ortega Alvarado, enquanto a letra é da banda Quilapayún – importante representante da Nueva Canción Chilena, ao lado de Victor Jara, dentre outros. O grupo também foi o primeiro a gravar a canção, num concerto ao vivo apenas três meses antes do golpe de estado que derrubou Allende.

O vídeo acima foi gravado no momento de maior radicalização política da história do Chile, quando a organização popular se mostrava poderosa diante de seus inimigos internos e externos. O golpe dado por Augusto Pinochet com apoio aberto das potências capitalistas, especialmente os EUA, massacrou a organização do povo, os músicos da Nueva Canción e todos que estavam no caminho do imperialismo e das classes dominantes chilenas. De experiência democrática socialista, o Chile se tornou o laboratório do neoliberalismo sob um regime que está entre os mais brutais da história do continente.

Mas a memória daquela experiência não se apagou nem durante nem após a ditadura de Pinochet, o que se percebe inclusive na presença da canção composta e rapidamente sufocada em 1973. É o mesmo grito que se ouviu quando um milhão de chilenos tomaram as ruas há poucos anos. O registro, feito por um brasileiro, é emocionante.

O povo unido, jamais será vencido!

De pé, cantar que vamos triunfar.
Avançam já bandeiras de unidade.
E você virá marchando junto a mim
E assim verá seu canto e sua bandeira florescer,
A luz de um vermelho amanhecer
Já anuncia a vida que virá.

De pé, lutar, o povo vai triunfar.
Será melhor a vida que virá
Conquistar nossa felicidade
Em um clamor de mil vozes de combate se levantarão
Dirão canção de liberdade
Com decisão a pátria vencerá.

E agora o povo que se levanta na luta
Com voz de gigante gritando: Enfrente!
O povo unido, jamais será vencido!
O povo unido jamais será vencido!

A pátria está forjando a unidade
De norte a sul se mobilizará
Desde a salina ardente e mineral
Aos bosques do sul unidos na luta e trabalho
Irão, a pátria cobrirão,
Seu passo já anuncia o porvir.

De pé, cantar o povo vai triunfar
Milhões já, impõe a verdade
De aço são ardente batalhão
Suas mãos vão levando a justiça e a razão
Mulher, com fogo e com coragem
Já está aqui junto ao trabalhador.

4. La Vie S’ecoule La Vie S’enfuit (Insurreição de Paris, 1968)

Gravada pela primeira vez em 1974, com interpretação de Jacques Marchais, a música foi atribuída a um anarquista anônimo, suposto participante da greve que paralisou a região belga da Valônia em 1961. Mas na verdade a música foi composta por Raoul Vaneigem, um dos principais nomes do movimento situacionista. E mesmo se alguns situacionistas estiveram presentes na greve belga, entre eles o próprio Vaneigem, a composição deve ser mais justamente associada à insurreição parisiense de Maio de 68, na qual os situacionistas tiveram um papel importante.

La Vie S’ecoule La Vie S’enfuit não foi a única canção a nascer de Maio de 68, tampouco a única escrita pelos situacionistas – poderíamos pensar, por exemplo, na canção do CMDO, o comitê de ocupação da Sorbonne. Mas a canção de Vaneigem exprime, talvez melhor que outras, o “rastro luminoso dos situacionistas” (Kurz) que formou o espírito dessa revolta. Nela encontramos a recusa de toda forma de representação política (partidos, dirigentes, Estado), a valorização da revolta como festa e, sobretudo, a crítica de um mundo no qual a nossa própria vida continua a nos escapar. Na oscilação entre um trabalho que não queremos e o consumo de mercadorias que não precisamos, a nossa “juventude morre de tempo perdido”.

A vida se esvai, a vida escapa.

A vida se esvai, a vida escapa
Os dias desfilam ao passo do tédio
Partido dos vermelhos, partido dos cinzas
Nossas revoluções são traídas

O trabalho mata, o trabalho paga
O tempo se compra no supermercado
O tempo pago não volta mais
A juventude morre de tempo perdido

Os olhos feitos para o amor de amar
São o reflexo de um mundo de objetos
Sem sonho e sem realidade
Somos condenados às imagens

Os fuzilados, os famintos
Vem até nós do fundo do passado
Nada mudou, mas tudo começa
E vai amadurecer na violência

Queimem, covis de padres
Ninhos de mercadores, de policiais
No vento que semeia a tempestade
Colhem-se os dias de festa

Os fuzis sobre nós dirigidos
Contra os chefes vão se virar
Sem mais dirigentes, sem mais Estado
Para aproveitar de nossos combates

5. Bella Ciao (Resistência ao fascismo na Itália, décadas de 1930-40)

A heroica história da resistência ao fascismo na Itália deixou uma belíssima herança musical, a começar por Il Ribelli della Montagna, canção que inspirou nosso Hino à Rua. No caso de Bella Ciao, o canto ganhou o mundo, dos EUA à Palestina, passando pelas recentes manifestações de Istambul.

A melodia já existia desde pelo menos o final do século XIX, sendo originalmente uma música cantada no trabalho de colheita nos campos da Itália. A letra, por sua vez, foi adaptada para a luta contra a Primeira Guerra Mundial e posteriormente apropriada pela luta antifascista dos anos 1930 e 1940, sendo esta versão a que se tornou mundialmente famosa. Trata-se de um canto que exalta a luta do partigiano – o guerrilheiro da resistência antifascista – e a justiça de sua causa.

Linda adeus!

Esta manhã, acordei
Linda adeus, linda adeus, linda adeus, adeus, adeus
Esta manhã, acordei
E encontrei o invasor

Oh guerrilheiro, me leve embora
Linda adeus, linda adeus, linda adeus, adeus, adeus
Oh guerrilheiro, me leve embora
Pois sinto que vou morrer

E se morro como guerrilheiro
Linda adeus, linda adeus, linda adeus, adeus, adeus
E se morro como guerrilheiro
Você deve me enterrar

Enterrar lá em cima, na montanha
Linda adeus, linda adeus, linda adeus, adeus, adeus
Enterrar lá em cima na montanha
Embaixo da sombra de uma bela flor

E as pessoas que passarão
Linda adeus, linda adeus, linda adeus, adeus, adeus
E as pessoas que passarão
E dirão: que bela flor

É esta a flor do guerrilheiro
Linda adeus, linda adeus, linda adeus, adeus, adeus
É esta a flor do guerrilheiro
Morto pela liberdade

6. A las barricadas (Resistência armada ao fascismo na Espanha, 1936-1939)

A letra de A las barricadas foi publicada em 1933 na revista anarquista Tierra y Libertad. O texto foi escrito por Valeriano Orobón Fernández, sobre a ária da Varsoviana, canção entoada pelo movimento operário polonês no fim do século XIX, e apropriada mais tarde pelos revolucionários russos em 1905 e em 1917. Orobón Fernandez foi teórico e militante anarcossindicalista, e morreu durante a Guerra Civil Espanhola. Ele era um dentre os cerca de dois milhões de filiados da Confederação Nacional do Trabalho (CNT-AIT), a maior organização anarquista da Espanha.

A revolução social espanhola foi amplamente libertária, a autogestão se impôs nas zonas urbanas e a coletivização nos campos – sobretudo nas regiões de maior presença dos sindicatos anarquistas, como a Catalunha. Mas as “negras tormentas agitavam os ares”, e o golpe militar de Franco lançou a Espanha numa sangrenta guerra civil. A las barricadas é um chamado ao combate contra o fascismo, e se tornou um hino da luta contra as tropas golpistas. O chamado foi, aliás, atendido por revolucionários de todo o mundo, reunidos nas Brigadas Internacionais. Mas, infelizmente, isso não foi o suficiente para superar o exército de Franco, que contou com o apoio das potências capitalistas, notadamente da Alemanha nazista e da Itália fascista. A derrota dos republicanos se deveu também às cisões internas na esquerda. A ascensão dos comunistas aliados a Moscou (e, portanto, a Stalin) se fez à custa do enfraquecimento das vertentes libertárias (como a CNT-AIT) e não alinhadas (como o POUM), debilitando fortemente o lado revolucionário.

Às barricadas

Negras tempestades agitam os ares
nuvens escuras nos impedem de ver,
ainda que nos espere a dor e a morte,
contra o inimigo nos chama o dever.

O bem mais precioso é a liberdade
Há que defendê-la com fé e coragem
Levanta a bandeira revolucionária
Que do triunfo sem cessar nos leva a emancipação*

Em pé povo obreiro à batalha!
Há que derrotar a reação!
Às barricadas! Às barricadas!
Pelo triunfo da Confederação

* Trecho adaptado a partir de outra versão da letra, dado que a original não tem correspondente em português

7. La Cucaracha (Revolução Mexicana, 1910)

http://www.youtube.com/watch?v=B_27Hi1In6o

Nem todos sabem, mas La Cucaracha, música mundialmente famosa e apropriada para os fins mais diversos, é antes de tudo uma canção revolucionária. Mais precisamente, uma canção bem-humorada para uma revolução com aroma de marijuana. Não se sabe precisar sua origem, mas a melodia parece remeter ao cancioneiro medieval espanhol. Contudo, foi a partir da Revolução Mexicana, iniciada em 1910, que ela se tornou um grande sucesso.

La Cucaracha não tem uma letra definida, intercalando-se o refrão e versos os mais variados, que se adaptam a temas e contextos e podem ser improvisados. O próprio nome, “a barata”, poderia ter sentidos diversos – era uma gíria para a maconha consumida massivamente no México, era o apelido do carro usado pelo revolucionário Francisco Villa, era um nome usado para definir a própria Revolução que, como uma barata em fuga, corria em direções imprevisíveis.

No decorrer da Revolução, muitos versos foram feitos satirizando diversos personagens e situações. Incluímos um deles, que faz referência a Carranza, liderança revolucionária liberal contestada e combatida pelas armas por setores indígenas e populares; e a Francisco Villa (também conhecido como Pancho Villa), que ao lado de Emiliano Zapata foi o personagem mais famoso do lado popular da Revolução. Com bom humor, os rebeldes cantavam que usariam os fartos bigodes de Carranza para decorar o sombrero de Villa.

A Barata

[refrão]
A barata, a barata
Já não pode caminhar
Porque não tem, porque lhe falta
Marijuana pra fumar

[um dos versos do contexto da Revolução]
Com a barba de Carranza
Eu vou fazer uma fita
Pra colocá-la no chapéu
Do senhor Francisco Villa

8. La Semaine sanglante (Comuna de Paris, 1871)

Jean-Baptiste Clément foi um dos insurretos da Comuna de Paris e compôs duas músicas que são associadas a essa revolta: Le temps des cerises e La semaine sanglante. A primeira, mais famosa, é na verdade uma canção de amor, composta alguns anos antes, e ulteriormente dedicada a uma enfermeira assassinada na repressão à Comuna. A segunda foi composta durante a chamada “semana sangrenta” e representa a repressão violenta ao movimento, o massacre dos insurretos pelas tropas do exército francês, que deixou mais de 20 mil mortos. O próprio Clément foi condenado à morte, mas conseguiu escapar e passou dez anos na clandestinidade. Mais a tarde ele contaria: “Eu ainda estava em Paris quando fiz essa canção. (…) Do local onde me haviam abrigado (…) ouvia todas as noites tiros de fuzil, prisões, gritos de mulheres e crianças. Era a reação vitoriosa que continuava sua obra de extermínio”.

Se a cidade de Paris pôde ser chamada de a “capital do século XIX” (Benjamin), isso não se deve apenas à sua importância cultural. Paris foi também a capital das revoluções. Entre 1789 e 1968, ela foi a cidade “de um povo que por dez vezes enchera suas ruas de barricadas e pusera em fuga seus reis” (Debord). A mais radical dessas revoluções foi sem dúvida a Comuna de Paris, a única que não se deixou trair, que não foi apropriada pelas classes dominantes, que não deu lugar a um novo governo autoritário. E por isso ela enfrentou também a repressão mais violenta de todas. A música de Clément nos conta essa repressão, mas não deixa de afirmar a necessidade da revolta. Da Comuna resta ainda a vontade da revanche, e a promessa de que “os maus dias acabarão”.

A semana sangrenta

Além de moscas e policiais
Não se veem pelos caminhos
Mais que velhos tristes em lágrimas
Viúvas e órfãos
Paris transpira miséria
Mesmo os felizes tremem
A moda está no conselho de guerra
E os pavimentos estão ensanguentados

Sim, mas…
Nada está decidido
Esses dias ruins acabarão
E cuidado com a revanche
Quando todos os pobres se engajarem

Batem, acorrentam e fuzilam
Todos aqueles que pegam ao acaso
A mãe ao lado de sua filha
A criança nos braços do velho
Os castigos da bandeira vermelha
São substituídos pelo terror
De todos os crápulas
Serventes de reis e imperadores

Eis-nos rendidos aos jesuítas
Aos Mac Mahon aos Dupanloup
Vai chover água benta
Os ofertórios vão encher de dinheiro
A partir de amanhã em júbilo
E a igreja de São Eustáquio e a Ópera
Vão concorrer mais uma vez
E as prisões de trabalho forçado ficarão cheias

Amanhã as Manons, as Lorettes
E as damas dos belos subúrbios
Colocarão em suas lapelas
Fuzis e tambores
Todos vestirão o tricolor
A moda do dia e as fitas
Enquanto o herói Pandore
Fará fuzilar nossos filhos

Amanhã os policiais
Florescerão sobre as calçadas
Orgulhosos de seus serviços
E a pistola a tiracolo
Sem pão, sem trabalho, sem armas
Nós seremos governados
Por moscas e policiais
Tiranos e padres

O povo na coleira da miséria
Será ele sempre esmagado?
Até quando os homens de guerra
Vão ter a dianteira?
Até quando a Santa Camarilha
Nos tomará por gado ruim?
Até quando enfim a República
Da justiça e do trabalho?

9. The Smashing of the Van (Resistència irlandesa à dominação inglesa, 1867)

Elaborada em meio a uma das muitas ondas de rebeldia irlandesa contra a dominação inglesa, The smashing of the van narra a história de três jovens condenados à morte após resgatarem duas lideranças presas. O ataque a um comboio de transporte de detentos ocorreu em setembro de 1867 e resultou na morte de um policial inglês. Segundo a defesa dos irlandeses, a morte foi acidental, fruto da tentativa de arrombar a fechadura do veículo a tiros. Condenados à forca, os três rebeldes ficaram conhecidos como os mártires de Manchester – cidade onde ocorreu a ação.

A canção recebeu outra versão quando a história do resgate de presos e da repressão se repetiu, no começo do século XX, com membros do Exército Republicano Irlandês (IRA) e se tornou um dos principais hinos da luta contra o domínio inglês. Disponibilizamos aqui a versão da banda folk The Wolfe Tones, mas ela também foi gravada pelo grupo Chumbawamba. The smashing of the van conjuga elementos da religiosidade e do nacionalismo popular da Irlanda com um apelo de caráter universal – o da legitimidade da resistência à tirania por via da ação direta.

A destruição do camburão*

Prestem atenção bravos irlandeses e ouçam um tempinho
Vou lhes cantar os louvores aos filhos da Ilha da Erin
Daqueles heróis corajosos que correram voluntariamente
Para libertar dois trevos irlandeses de um camburão Inglês

Meu rapazes pela liberdade, vamos todos com a mão no coração.
Que o Senhor tenha misericórdia dos garotos que ajudaram a destruir o camburão

Em 18 de Setembro, era um ano terrível
Quando a dor e a emoção correram por toda Lancashire
Em uma reunião dos garotos irlandeses cada homem se ofereceu
Para libertar os prisioneiros irlandeses do camburão

Em uma manhã em Manchester aqueles heróis concordaram
Seus líderes, Kelly e Deasy, deveriam ter sua liberdade
Brindaram à Irlanda e logo fizeram o plano
Encontrar os prisioneiros na estrada, tomar e destruir o camburão

Com destemida coragem aqueles heróis foram e logo o camburão parou
Eles tiraram os guardas de trás e da frente e então quebram em cima
Mas ao estourar a tranca, eles sem querer mataram um homem
Então três homens deverão morrer na forca por destruir o camburão

Então agora amáveis amigos vou concluir, eu acho que seria certo
Que todos os Irlandeses sinceros se unissem
Juntos devemos nos compadecer, amigos, e fazer o melhor que pudermos
Para manter as lembranças sempre verdes dos garotos que destruíram o camburão

* Traduzimos como “camburão” para não perder o sentido de que se tratava de um veículo para transporte de prisioneiros

10 – The Triumph of General Ludd (Luddismo, 1812)

Esta canção é encontrada com algumas variações, sendo provavelmente composta no auge da rebeldia dos ludditas, no início da década de 1810. Trabalhadores têxteis que se voltavam contra a maquinaria moderna e a alienação do trabalho, os ludditas invadiam as fábricas com os rostos cobertos e no escuro da noite, destruindo e sabotando as novas máquinas. Muitos dos textos que deixaram (como petições ao parlamento e ameaças a industriais caso não se livrassem dos equipamentos) são assinados por Ned Ludd (ou General Ludd). Personagem que se situa entre o mito e a história, Ludd era o novo Robin Hood dos trabalhadores ingleses. A reação do Estado ao luddismo foi de uma violência atroz, incluindo a aprovação da pena de morte para o crime de destruição de máquinas.

A versão que indicamos é a do álbum English Rebel Songs 1381–1984 da banda Chumbawamba. Para quem quiser conhecer as tradições musicais rebeldes da Inglaterra, recomendamos o álbum como um todo, que inclui outra canção desta lista – The smashing of the van.

O Triunfo do General Ludd

Sem mais cantorias de suas velhas rimas sobre o velho Robin Hood
Suas proezas eu pouco admiro
Eu vou cantar as conquistas do General Ludd
Agora, o herói de Nottingham Shire
Esses motores de dano foram sentenciados à morte
Por unanimidade de votos do sindicato
E Ludd que não pode desafiar a decisão
Foi feito o grande carrasco
Quer guardado por soldados ao longo da rodovia
Ou protegido de perto num quarto
Ele os faz estremecer de noite e de dia
E nada pode suavizar sua destruição
E todo o time de humildes não deve mais ser oprimido
E Ludd deve embainhar sua espada conquistadora
E seja sua reivindicação prontamente atendida com reparação
Que a paz deve ser rapidamente restaurada
Deixe o sábio e o grande prestar sua ajuda e aconselhar
Nunca antes a sua ajuda retirar
Até que o trabalho árduo ao preço antigo
Esteja estabelecido por costume e lei.

Every routine has its violence

Work’s routine is alienation

Worker’s routine is work

Bosses’ routine is exploitation

At home the routine is to wake up early

On the streets, the routine is… fear.

 

Massacre is the routine of prisons

The routine of the State is the exception

Punishment is the routine of quarters

The routine of the businessman… is the cartel.

 

Shouting is a brave routine

Silence is a convenient routine

To all those whose routine is oppression

Whether in uniform or in cassock

 

Protesting is the routine of the decent

People who face genocide

To the Indians genocide is routine

In the favelas obituaries are routine

In the palaces something else is routine

 

Fiscal evasion is routine for the wealthy

Capital has the routine of disdain

The routine of those who say sustainable

Is to turn the Indians’ knowledge into profit

 

The routine of the police is vengeance

Struggle is the routine of changes

Media’s routine is cynicism

A playboy’s routine… is hygienism

 

Violence is routine for workers

Violence is routine for prisoners

Violence is routine when it’s convenient

Violence is the routine of disdain

Violence is routine for the military man

Cartel is the violence of businessmen

 

It’s not about braking bank agencies

All routine has its violence

 

 

 

Toute routine a de la violence

L’aliénation est la routine du travail

Le travail est la routine du salarié

Exploiter est la routine du patron

Chez nous la routine est se réveiller tôt

Dans les rues, la routine… c’est la peur

 

Le massacre est la routine de la prison

La routine de l’État est l’exception

Le châtiment est la routine de la caserne

La routine des entreprises… est le cartel.

 

Crier est la routine qui fait du bien

Le silence est la routine qui convient

À ceux qui font de l’oppression une routine

En uniforme ou en soutane, peu importe

 

Protester est la routine des braves

Des gens qui affrontent le génocide

Pour l’indigène la routine est la tuerie

La routine aux favelas est l’obituaire

La routine aux palais… c’est le contraire

 

L’évasion fiscale est la routine des friqués

Le capital a la routine du mépris

La routine de ceux qui disent « durable »

Est faire le savoir indigène… vendable

 

La routine de la police est la vengeance

La lutte est la routine du changement

La routine des médias est le cynisme

La routine des play-boys… est l’hygiénisme

 

La violence est la routine du salarié

La violence est la routine des prisons

La violence est la routine qui convient

La violence est la routine du mépris

La violence est la routine de la caserne

La violence est la routine du cartel

 

Il ne s’agit pas de casser une banque

Toute routine est violente

Toda rutina tiene su violencia

La alienación es la rutina del trabajo

El trabajo es la rutina del peón

Explotar es la rutina del patrón

En casa la rutina es despertar temprano

En las calles, la rutina… es el miedo

 

La masacre es la rutina de la cárcel

La rutina del Estado es la excepción

El castigo es la rutina del cuartel

La rutina del empresario…. es el cartel

 

El grito es la rutina que hace bien

El silencio es la rutina que conviene

A quien hace de la opresión una rutina

No importa si de uniforme … o de hábito

 

El manifiesto es la rutina del decente

De la gente que enfrenta el genocidio

Para el indio la rutina es el exterminio

La rutina de los barrios bajos es el obituario

La rutina del palacio… es lo contrario

 

El dinero negro es la rutina de quien tiene

La rutina del capital es el desdén

La rutina de quien dice que es sustentable

Es tornar el saber indígena…. cosa rentable

 

La rutina de la policía es la venganza

La lucha es la rutina de la mudanza

La rutina de la prensa es el cinismo

La rutina del rico…. es el higienista

 

La violencia es la rutina del peón

La violencia es la rutina de la cárcel

La violencia es la rutina que conviene

La violencia es la rutina del desdén

La violencia es la rutina del cuartel

La violencia del empresario es el cartel

 

No si trata de quebrar una agencia

Toda rutina tiene su violencia

Toda rotina tem sua violência: poema

A alienação é a rotina do trabalho

O trabalho é a rotina do peão

Explorar é a rotina do patrão

Em casa a rotina é acordar cedo

Nas ruas, a rotina… é o medo

 

O massacre é a rotina da prisão

A rotina do Estado é a exceção

O castigo é a rotina do quartel

A rotina do empresário… é o cartel

 

O grito é a rotina que faz bem

O silêncio é a rotina que convém

A quem faz da opressão uma rotina

Não importa se de farda… ou de batina

 

O protesto é a rotina do decente

Da gente que enfrenta o genocídio

Pro índio a rotina é a chacina

A rotina da favela é o obituário

A rotina do palácio… é o contrário

 

Sonegar é a rotina de quem tem

O capital tem a rotina do desdém

A rotina de quem diz que é sustentável

É tornar saber indígena… coisa rentável

 

A rotina da polícia é a vingança

A luta é a rotina da mudança

A rotina da mídia é o cinismo

A rotina do playboy… é o higienismo

 

A violência é a rotina do peão

A violência é a rotina da prisão

A violência é a rotina que convém

A violência é a rotina do desdém

A violência é a rotina do quartel

A violência do empresário é o cartel

 

Não se trata de quebrar uma agência

Toda rotina tem sua violência

 

Baderna Midiática

Hino à Rua – Letra completa

Ela é mais que o asfalto onde eu piso
Ela é o caminho que nos leva à liberdade
Quando os povos oprimidos a conquistam
É a parte mais bonita da cidade
É ela quem escuta os nossos gritos
O riso, o choro, o lamento de dor
As bombas, disparos, os golpes brutais
De quem pratica a guerra e fala em paz

[Refrão]
Ela é dos cantos, das batucadas
É o povo unido quem a detém
É das bandeiras, das barricadas
Ela é de todos porque é de ninguém
Não é dos chefes, nem dos patrões
Não é uma posse, não é um bem
Nem dos Estados, nem das nações
Ela é de todos porque é de ninguém

Rua. Segundo lar
Primeiro campo de futebol

Te querem apenas caminho
pra quem te depreda com fumaça preta

Te querem assunto de urbanistas
engenheiros
criminologistas

Eu te quero assunto de poetas
De amantes
e de povos rebelados

Te quero
dos que te construíram e que hoje não te podem desfrutar
Porque foram descartados, porque foram despejados

Toda ocupação que resiste no centro da cidade
tem um pouco de quilombo

Ameaça ao latifúndio urbano
Monocultura cinza movida a petróleo e suor
O suor de quem vem nos trens lotados

Todo busão que vem cheio das quebradas, que vem cheio de catracas
tem um pouco de navio negreiro
Transporte desumano de carne humana
Pra ser moída e desossada no trabalho

Rua, você é de todos
Que fora do trabalho são suspeitos
De roubar, de depredar, de discordar
Ou de não contribuir pro crescimento do Produto Interno Bruto

Quem veste um capuz e extermina na favela é um pouco capitão-do-mato

Rua
Te quero das mulheres ensinadas desde cedo que só podem brincar dentro de casa
porque a rua é perigosa, porque a rua é violenta
porque a rua é dos meninos que não sabem respeitar

Rua eu te conheço, quem te faz uma ameaça às meninas e mulheres
É a mesma opressão que torna as casas inseguras
Mais que as ruas

A rua é de todos os amores
É daqueles que tiveram que ocupa-la
pelo direito de existir

Todo discurso moralista que se opõe à igualdade
Que se opõe à autonomia sobre o corpo
É um pouco tribunal da Inquisição

A rua não comporta privilégios
Não tem dono nem tem preço

É como o vento, o sol, a chuva
o calor, as nuvens, cores
minha alegria e minhas dores

Por isso hoje eu vim pra rua

13 de junho de 2013, noite fria
Ocupamos a rua para devolver o que é dela de direito
O lugar da assembleia mais legítima

Na televisão 5 mil vândalos sem causa interrompiam o trânsito

Nas ruas
15, 20 ou 30 mil lutavam por uma vida sem catracas

Nos chamavam “loucos” como chamavam os balaios que encaravam o poder de peito aberto
em um país construído sobre corpos, assentado sobre o sangue
Dos explorados

Nos chamavam “criminosos violentos” como chamam violento ao rio que tudo arrasta
Mas não as margens que o oprimem

Criminosos também eram chamados os luditas
panteras negras, zapatistas, feministas
milicianos da Espanha, guerrilheiros da América Latina

insurretos de Istambul, do Cairo e de Atenas
de Buenos Aires, de Paris, de Cochabamba
de Pequim, de Porto Príncipe, de Gaza
de Londres, de Soweto, de Lisboa

Trabalhadores anarquistas da Itália ou de São Paulo
quilombolas da Jamaica ou da Bahia
rebeldes e poetas de todas as periferias

Loucos, criminosos, estudantes
Nos querem dentro de hospícios, de cadeias, de escolas
Longe das ruas

Querem as grades, os muros, as cercas, as catracas
Uma cidade em que circulam carros, mas onde as pessoas
São confinadas

Jornalistas, doutores, políticos não podem entender
Que democracia é muito mais que apertar um botão de vez em quando

Que estamos dispostos a fazer a nossa história mesmo nas piores condições
Que não temos ilusões, nem vivemos fantasias
Somos aqueles que se movem
E por isso sentimos o peso das correntes que nos prendem

Eles podem mas não querem entender
Que já sabemos que o Estado e o capital são gêmeos siameses
Vivem brigando, mas partilham o mesmo sangue e o mesmo coração
Nasceram juntos e juntos vão morrer pelas mãos dos explorados

Que já sabemos que o estado de exceção em que vivemos
É na verdade regra geral
Que essa paz que oferecem não é nada além de medo

Que passado este medo não haverá quem defenda suas mansões
E não vai faltar quem abra as portas pelo lado de dentro

Que em tempo de desordem sangrenta e confusão organizada
nada nos parece natural
Nada nos parece impossível de mudar

Que agora as mentiras da TV são motivos de piada
Que o rei está nu e sua foto tá nas redes sociais

Que foi nos organizando que nós desorganizamos
E que é desorganizando
que vamos nos organizar

Nada do que venha a acontecer vai tirar de nós o sentimento
de ter tomado o céu de assalto
de ter presenciado quando a vida surgiu de uma nuvem de gás lacrimogêneo

Arrancamos a política das malhas do mundo profano

Nossas palavras dedicamos a
Ademir, André, Carlos Eduardo
Cleonice, Douglas, Eraldo
Fabrício, Igor, Jonatha
José Everton, Lucas, Luiz
Marcos, Renato, Roberto, Valdinete

E a todas as vítimas anônimas da violência do Estado
em sua defesa feroz do capital

Na rua nenhum monumento é inocente
Nela os que tombaram ressurgem pra lutar ao nosso lado

Os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer
Combatemos para que não morram a morte do esquecimento
Combatemos para impedir o inimigo de vencer