Um vídeo divulgado logo após as manifestações de 7 de setembro em todo o Brasil já ultrapassou a marca de meio milhão de visualizações. O que choca não é a violência da ação policial – muito menos brutal que nas imagens produzidas no mesmo dia em São Paulo e em Salvador, por exemplo –, mas a tranquilidade e o deboche da autoridade responsável ao ser questionado sobre sua ação arbitrária. A certeza da impunidade do Capitão Bruno, do batalhão de choque de Brasília, não é uma excentricidade dele. A agressão aos manifestantes sem outra justificativa que não a de que fiz “porque eu quis” requer um complemento: “fiz porque os dispositivos de exceção presentes na democracia brasileira me permitem, fiz porque neste país não há qualquer risco de que um abuso ou um crime de minha parte venha a ser julgado por civis, fiz e poderia fazer muito mais (inclusive torturar e matar) sem que isso me trouxesse problemas sérios”.
A prepotência de um oficial que se percebe acima das leis que regem a população civil esconde, por sua vez, o fato de que a repressão interna aos quartéis regidos por códigos militares por vezes coloca os soldados abaixo das leis. Eles raramente recebem alguma punição quando massacram a população civil, mas frequentemente recebem punições duras caso se manifestem por questões trabalhistas, ou ainda caso hesitem em cumprir ordens. Quando, em meio às jornadas de junho, um policial de São Paulo se recusou a partir com uma viatura para cima de manifestantes, colocando a vida destes em sério perigo, ele correu muito mais risco de punição do que se tivesse exterminado pessoas às dúzias pelas ruas da cidade. Muito provavelmente, ele teve sua punição, ao contrário de seus colegas que formam grupos de extermínio na cidade.
Para elucidar que ordem jurídica é esta em que a segurança pública está fora do controle das instituições democráticas, publicamos um texto elaborado em novembro de 2011, no contexto da última ocupação da reitoria da USP – fato que antecipou muitos pontos do debate atual sobre a necessidade de desmilitarização da polícia, sobre o direito de manifestação e sobre as estratégias de criminalização por parte da mídia corporativa.
Notas sobre a PM e a exceção brasileira
Salvo indicação as informações elaboradas abaixo bem como a bibliografia pertinente encontram-se em Jorge Zaverucha, « Relações Civil-Militares : O legado autoritário da constituição brasileira de 1988 » In. : Telles, Edson et. Safatle, Vladimir (orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo : Boitempo, 2010, pp. 41-76
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Segundo a Constituição Federal de 1988, mesmo em tempos de paz, a Polícia Militar é uma força de reserva do exército (CF. 144-IV, §6), situação no mínimo incomum em regimes democráticos consolidados. Por outro lado, essa característica é marcante nos regimes autoritários, que compreendem que o Exército tem prioridade na manutenção da Lei e da Ordem Social.
O governo federal é responsável pela organização das PMs , suas tropas e seus armamentos, estando subordinada aos Governadores (CF 1988 artigo 22-XXI.). As PMs estão atreladas aos planos de defesa interna e territorial do Exército. Em caso de subversão da ordem, as PMs passam ao controle das Regiões Militares do Estado.
Na constituição de 1988, a organização das PMs (tipo de armamento, alinhamento das tropas, construção de novos quartéis) fica a cargo da Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), orgão vinculado ao ministro do exército. A IGPM foi criada através do decreto n° 61.245, de 28 agosto de 1967, buscava coordenar as ações das Polícias Militares nos diversos estados, bem como ressaltar o controle federal sobre as mesmas. Em 1998, a IGPM foi substituída pelo Comando de Operações Terrestres (Coter), orgão operacional dirigido por um general de exército. (Para efeitos de comparação o IGPM era um orgão burocrático sob comando de um general de brigada ou de divisão, o Coter é um orgão operacional dirigido por um general formado para comandar tropas em campos de batalha).
As PMs copiam o modelo de batalhões de infantaria do Exército. São regidas pelo mesmo código Penal e de Processo Penal Militar , seu regulamento disciplinar é muito semelhante ao do exército, conforme decreto n°667, de 2 de julho de 1967.
O Código Penal Militar, por sua vez, é fruto do decreto Lei n°1001 de 21 de outubro de 1969, decretado pelos ministros da Marinha, Exército e Aeronáutica, usando das atribuições que lhes confere o art. 3º do Ato Institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o § 1° do art. 2°, do Ato Institucional n° 5, de 13 de dezembro de 1968 (Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1001.htm). Neste sentido, os soldados da PM, ao cometerem algum crime contra civis no exercício de suas funções policiais, mesmo em tempos de paz, só podem ser julgados por tribunais militares. A Constituição de 1988 considera crimes militares aqueles que estão contemplados pelo Código Penal Militar, consolidando assim a validade do decreto de Lei de 21 de outubro de 1969. No artigo art. V-LXI da Constituição de 1988, podemos ler « ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei ».
A definição de crime militar, por sua vez, é bastante ampla sendo virtualmente capaz de indiciar quase todo o tipo de crime, inclusive aqueles cometidos contra ou por civis. Tal situação implica em foro privilegiado para aqueles que usam a farda. Nos dias de hoje, segundo a legislação vigente, a possibilidade de um policial militar ser indiciado e julgado por autoridades civis é virtualmente inexistente. Um exemplo emblemático desta situação de exceção aconteceu por conta do massacre contra os Sem Terra em Eldorado dos Carajás. Apenas sob pressão de orgãos internacionais (OEA principalmente) o governo conseguiu, em 1996, mobilizar apoio suficiente para a criação de uma lei que pudesse levar à julgamento em tribunais civis os crimes de assassinato doloso perpetrado por polícias militares em função de policiamento. Trata-se da Lei de n°9299, que incide sobre o decreto de 1969 (O Código Penal Militar). Todavia, leve-se em conta que militares federais estão excluídos dessa Lei, graças ao Projeto de Lei n°314. Ainda assim, segundo a Lei n°9299 aprovada em 9 de maio de 1996, a investigação criminal continua a cargo dos militares. Neste caso, PMs estaduais que cometam assassinato doloso contra civis no exercício de funções policiais, mesmo passíveis de serem julgados por tribunais civis, são investigados por colegas de farda. Há de se ressaltar que outros crimes muito mais comuns como agressão, abuso de poder, prevaricação, danos ao patrimonio, etc, continuam sob a alçada do Tribunal Militar e do CPM. Algo em franco desacordo com o artigo 144 §5° da atual Constituição, uma vez que ele estipula que crimes civis devem ser investigados pela Polícia Civil. Os militares federais que cometem os crimes de assassinato doloso em exercício de funções policiais, por sua vez, continuam sendo julgados por tribunais militares. Algo cuja gravidade salta aos olhos haja visto o Decreto-Lei n°3867 de 24 de agosto de 2001, que confere poder de polícia para as Forças Armadas em ações ostensivas de segurança pública, algo muito em voga nas ocupações de morros no Rio de Janeiro, por exemplo.
Os crimes militares também englobam crimes praticados contra militares ou contra os interesses da instituição. Assim, de acordo com a legislação vigente, civis podem ser julgados por tribunais militares em casos de crimes cometidos em área de jurisdição militar ou, mais genericamente, crimes que estejam sob a Legislação Militar, que como vimos acima é bastante ampla. Esses delitos vão desde roubo de material em área militar (roubo de madeira ou material de construção), trânsito não autorizado, até crimes de subversão da ordem, ou os chamados crimes políticos.
O artigo 109-IV da Constituição diz que compete aos juízes federais processar e julgar crimes políticos. Contudo, não há no Brasil legislação sobre eles. Diante disso, a Lei de Segurança Nacional (14 de dezembro de 1983, aprovada no final do governo do general Figueiredo), que é formalização jurídica da Doutrina de Segurança Nacional (pela qual o ex-presidente Lula foi mantido preso por 31 dias em 1980) termina por cobri-los e os violadores permanecem sendo julgados por Tribunal Federal Militar. Situação única em regimes democráticos, excetuando-se casos extremos como os de Terrorismo, por exemplo.
Poderia-se afirmar que o famosos Patriot Act de 2001, promulgado pelo congresso norte-americano após os controversos eventos de 11 de setembro de 2001, durante a presidência G.W. Bush, inauguraria a era da exceção em nível global, atingindo mesmo democracias vistas como consolidadas [ Cf. Agamben, « O estado de exceção »], ao alargar consideravelmente a possibilidade de intervenção militar na vida civil, tornando possível um governo em permanente estado de sítio. Contudo, se considerarmos a Constituição de 1988, apesar dos avanços sociais ali obtidos, veremos que a exceção, no caso brasileiro, já está no próprio texto da Lei. Se não bastasse os Artigos e Projetos citados acima. O artigo 142 diz que as Forças Armadas « destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem ». Não se trata, ao meu ver, de um dispositivo de emergência , muito comum nas constituições liberais desde os tempos da Revolução Francesa (o estado de sítio, estado de exceção, estado marcial , etc…). O caso parece outro. A julgar pelo o texto da Constituição de 1988 as Forças Armadas estão posicionadas no papel de garantidoras dos poderes da República, sem elas, ou sem sua anuência, o Judiciário, o Legislativo e o Executivo simplesmente não podem funcionar.