Em artigo publicado na Carta Capital, assinado por Lino Bocchini e intitulado “MPL mira em Haddad e alivia para Alckmin”, o Movimento Passe Livre é acusado de poupar o governador Geraldo Alckmin em seus protestos. Deixemos de lado as mentiras deslavadas do texto, como a de que o ato do dia 23 terminaria na prefeitura (terminaria na secretaria estadual, caso a repressão não impedisse sua continuidade), a de que o ato do dia 29 terminou na casa do prefeito (começou no MASP, terminou no Ibirapuera, com uma parada na casa de Haddad), ou a de que o governador é poupado das críticas veiculadas pelo movimento. Deixemos de lado também as omissões descaradas, como a de que, apesar da enorme distância e de ser um local pouco propício, o movimento já se dirigiu ao Palácio dos Bandeirantes em sua jornada anterior, ou a de que nenhum prefeito foi poupado pelo movimento (em 2011, Kassab não recebeu uma, mas duas visitas em sua residência, além de ser confrontado por apoiadores do movimento em diversas aparições públicas, e até mesmo quando em viagem ao exterior). Quer dizer, ainda que o texto seja uma deturpação cínica da realidade desta jornada de luta contra a tarifa, ainda vale dialogar com ele para chamar a atenção para os rumos que o governismo tomou ao atacar um movimento social.
O argumento central não só do texto, como de diversos petistas nesses tempos, é o de que o movimento tem que cobrar mais do Alckmin do que do Haddad, e que o MPL estaria fazendo o contrário. Deveria cobrar mais porque, sendo igualmente responsável pela mobilidade urbana, Alckmin representa um campo político mais à direita, mais autoritário e responsável por outros problemas graves para os trabalhadores da cidade, como é o caso da crise da água e da violência policial. O movimento estaria fazendo o contrário porque (devidamente omitidas as demais ações) se dirigiu à prefeitura e à casa de Haddad em seus atos. Mas mentiras e omissões à parte, existe de fato uma cobrança direcionada a Haddad, que realmente não é poupado pelo MPL. Deveria ser?
Primeiramente, é preciso perceber que desde 2013 o prefeito tem se aliado ao governador na repressão ao movimento, e também que sua suposta “abertura ao diálogo” resultou num conselho que não é ouvido e numa auditoria que evidencia a máfia dos transportes, mas que tem como resposta prática um novo aumento na tarifa que poupa a máfia e atinge a população. Tanto naquela ocasião como agora, Haddad saiu à frente na decisão de aumentar a tarifa e, não sendo ele ingênuo, é de se esperar que saiba do ônus político que tal decisão implica. Para além disso, em 2013, foi o prefeito quem, num movimento péssimo para suas próprias pretensões, recusou ceder ao movimento pela manhã para deixar Alckmin anunciar ao seu lado a revogação do aumento horas depois. E mais: foi de sua boca que saiu o discurso tecnocrata neoliberal sobre “cortar da saúde para baixar a tarifa”. Finalmente, já em 2015 a “abertura ao diálogo” incluiu a reunião de gabinete com supostos “representantes” da luta nas ruas que eram nada mais nada menos que braços do governo, pois há muito tempo é isso que a UNE e congêneres se tornaram. E isso enquanto comparava movimento social a terroristas!
Um prefeito que defende a repressão, poupa o governador, apresenta uma farsa de “abertura ao diálogo” e mantém intocada a máfia dos transportes não é exatamente um interlocutor comprometido em atender demandas populares relativas à mobilidade urbana. Ainda assim, não é estranho que espere-se dele, por ter contado com o apoio de amplos setores da esquerda e dos movimentos sociais em sua eleição, uma maior disposição em ceder às ruas. Logo, poupá-lo seria uma boa opção se o MPL fosse mais um braço do PT e se sua luta fosse para derrotar o PSDB nas urnas. Mas não: o MPL é um movimento social!
Movimentos sociais, quando não são simulacros de movimentos sociais (a exemplo da própria UNE), pensam estrategicamente e não eleitoralmente. Querem avançar suas pautas e não calcular votos ganhos ou perdidos por terceiros. Sendo assim, que sentido teria fazer da luta contra a tarifa um movimento contra Alckmin, preservando o prefeito? Aliás, na lógica de um movimento social mesmo um enfoque maior em Haddad é perfeitamente compreensível e nada tem de “perseguição ao PT”.
Isso pode parecer estranho aos petistas hoje, então tratemos de voltar um pouco no tempo. É que, ao se estabelecer no Estado, o petismo se afastou tanto dos movimentos sociais que nem lembra mais o que eles eram originalmente…Então, alguns dados: nos dois últimos anos do governo FHC, os sem-terra fizeram 283 (ano de 2001) e 273 (2002) ocupações. Nos dois primeiros anos do governo Lula, fizeram 555 (2003) e 702 (2004). Será que o MST também “fazia o jogo da direita antipetista”? Ou será que ele agiu como o movimento social combativo que era e viu no PT uma abertura maior para fazer avançar sua pauta do que o governo FHC, com quem não tinha conversa?
Claro que há diferenças, e uma delas é que o MPL, ao contrário do MST, é um movimento essencialmente de juventude e, portanto, há um corte geracional que faz com que não se alimente ali quaisquer esperanças com relação ao PT, pois essa juventude nunca viu o “PT de luta” cuja imagem ainda empolgava muita gente nos anos FHC, muitos inclusive até depois da eleição do Lula, alguns (tiozinhos persistentes!) até o governo Dilma. Afora, claro, que este corte geracional é global por conta do rápido avanço da violência sistêmica (este nome sociologicamente correto pra barbárie do capital), da catástrofe ambiental (ligada a um modelo de crescimento que o PT abraçou com todas as forças) e de outras questões, que fazem com que haja um sentido de urgência política diverso daquele de gerações anteriores. E isso faz diferença porque dificulta enormemente a cooptação por partidos da esquerda tradicional.
Mas há mais do que isso. O MPL não é só mais jovem, ele também difere em seus princípios organizativos, inspirados em tradições diversas daquelas que deram origem tanto ao PT, quanto ao MST. Trata-se, por um lado, do reconhecimento de que há uma luta por mobilidade urbana com suas próprias tradições de contestação e, por outro, da experimentação de formas de organização que tomam de assalto a política em todo o mundo. Formas fundadas na autonomia, na horizontalidade e na recusa de mediações burocráticas. O MPL é de difícil compreensão para os petistas (e, de resto, para quase toda a velha guarda da esquerda) porque nele confluem explosivamente a tradição de revolta urbana por mobilidade (que a esquerda quase sempre ignorou) e a novidade dos movimentos anticapitalistas globais.
Nesta incompreensão e recusa da política do MPL, os petistas tendem a pensar o movimento como sendo ocultamente dirigido pelos partidos políticos da extrema-esquerda, o que é outro equívoco, pois mesmo esses partidos não conseguem ter influência decisiva na definição dessas lutas. A horizontalidade é real e o movimento vem da base. O resto é conspiracionismo digno da extrema direita – e indigno para quem se reivindica entusiasta dos movimentos sociais. A incompreensão se dá porque o MPL é um movimento que se apoia numa tradição de lutas populares e não nos termos da formação política das velhas organizações, que mesmo quando se confrontam e se digladiam não deixam de se compreender mutuamente. Trata-se de um movimento popular, autônomo, que se faz socialista na prática, ao questionar o desenvolvimento do capital em alguns dos focos principais de avanço da sua barbárie hoje: a gentrificação, a especulação imobiliária, a privatização do espaço público, a marginalização social. É por ser um ponto fora da tradição hegemônica da esquerda – já que não tem uma linhagem que lá atrás remete ao partidão, ao sindicalismo pré-AI-5, à teologia da libertação, etc. – que o MPL causa esta perplexidade nos quadros petistas ou que giram em torno do partido.
Um petista entende muito melhor o PSTU ou o PSOL, que saíram de seu ventre, do que um movimento que remete a uma tradição que quase sempre passou por fora do radar da esquerda. Uma tradição que só pode se colocar, viva e intensa, como ação organizada, porque o movimento é autônomo. Quer dizer, porque ele é intransigente quanto à pauta que coloca no horizonte – a Tarifa Zero – e não aceita subordiná-la a outras pressões, particularmente as pressões eleitorais. Considera avanço apenas aquilo que se encaminha para este horizonte e não qualquer alteração de quadro eleitoral que possa advir da sua ação. É um movimento social, fundado numa tradição de luta dos oprimidos, com princípios socialistas libertários, mas aberto ao diálogo com quem mais quiser somar nesta luta. Nesse sentido, faria bem, para entender o MPL, ouvir o que eles gritam nas ruas: “agora é de 3 reais pra baixo”, “chega de tarifa e de político babaca”, etc. Não são gritos contra Haddad ou contra Alckmin, mas de afirmação de sua pauta e de negação das mediações institucionais para chegar a ela.
Portanto, o MPL não é antipetista, ele só não foi formado pela mesma tradição que o PT e resiste – sempre e com todas as forças – tanto à repressão, quanto à cooptação. O movimento não está nem aí para a popularidade do Alckmiin ou do Haddad, a não ser talvez como informação que permita pensar estratégias para avançar na sua pauta. Para o movimento social, quem tem que pensar em eleições são os partidos e suas lideranças, e não quem está fazendo o que se propõe a fazer, que é travar uma luta anticapitalista contra as catracas que limitam os fluxos humanos nas cidades.
Se Haddad quer ser poupado, que revogue o aumento da tarifa e a bomba cairá integralmente no colo do Alckmin, o prejudicando eleitoralmente. E a questão que fica é: por que petistas que se entendem como apoiadores dos movimentos sociais preferem atacar o movimento ao invés de exigir do seu prefeito que, além de beneficiar milhões de paulistanos, coloque seu maior adversário na arena eleitoral numa situação extremamente difícil? Pois atacar e criminalizar os movimentos sociais é levar a disputa para o terreno preferido do governador, e nele – pensando eleitoralmente – vocês só tem a perder…