Ela é mais que o asfalto onde eu piso
Ela é o caminho que nos leva à liberdade
Quando os povos oprimidos a conquistam
É a parte mais bonita da cidade
É ela quem escuta os nossos gritos
O riso, o choro, o lamento de dor
As bombas, disparos, os golpes brutais
De quem pratica a guerra e fala em paz
[Refrão]
Ela é dos cantos, das batucadas
É o povo unido quem a detém
É das bandeiras, das barricadas
Ela é de todos porque é de ninguém
Não é dos chefes, nem dos patrões
Não é uma posse, não é um bem
Nem dos Estados, nem das nações
Ela é de todos porque é de ninguém
Rua. Segundo lar
Primeiro campo de futebol
Te querem apenas caminho
pra quem te depreda com fumaça preta
Te querem assunto de urbanistas
engenheiros
criminologistas
Eu te quero assunto de poetas
De amantes
e de povos rebelados
Te quero
dos que te construíram e que hoje não te podem desfrutar
Porque foram descartados, porque foram despejados
Toda ocupação que resiste no centro da cidade
tem um pouco de quilombo
Ameaça ao latifúndio urbano
Monocultura cinza movida a petróleo e suor
O suor de quem vem nos trens lotados
Todo busão que vem cheio das quebradas, que vem cheio de catracas
tem um pouco de navio negreiro
Transporte desumano de carne humana
Pra ser moída e desossada no trabalho
Rua, você é de todos
Que fora do trabalho são suspeitos
De roubar, de depredar, de discordar
Ou de não contribuir pro crescimento do Produto Interno Bruto
Quem veste um capuz e extermina na favela é um pouco capitão-do-mato
Rua
Te quero das mulheres ensinadas desde cedo que só podem brincar dentro de casa
porque a rua é perigosa, porque a rua é violenta
porque a rua é dos meninos que não sabem respeitar
Rua eu te conheço, quem te faz uma ameaça às meninas e mulheres
É a mesma opressão que torna as casas inseguras
Mais que as ruas
A rua é de todos os amores
É daqueles que tiveram que ocupa-la
pelo direito de existir
Todo discurso moralista que se opõe à igualdade
Que se opõe à autonomia sobre o corpo
É um pouco tribunal da Inquisição
A rua não comporta privilégios
Não tem dono nem tem preço
É como o vento, o sol, a chuva
o calor, as nuvens, cores
minha alegria e minhas dores
Por isso hoje eu vim pra rua
13 de junho de 2013, noite fria
Ocupamos a rua para devolver o que é dela de direito
O lugar da assembleia mais legítima
Na televisão 5 mil vândalos sem causa interrompiam o trânsito
Nas ruas
15, 20 ou 30 mil lutavam por uma vida sem catracas
Nos chamavam “loucos” como chamavam os balaios que encaravam o poder de peito aberto
em um país construído sobre corpos, assentado sobre o sangue
Dos explorados
Nos chamavam “criminosos violentos” como chamam violento ao rio que tudo arrasta
Mas não as margens que o oprimem
Criminosos também eram chamados os luditas
panteras negras, zapatistas, feministas
milicianos da Espanha, guerrilheiros da América Latina
insurretos de Istambul, do Cairo e de Atenas
de Buenos Aires, de Paris, de Cochabamba
de Pequim, de Porto Príncipe, de Gaza
de Londres, de Soweto, de Lisboa
Trabalhadores anarquistas da Itália ou de São Paulo
quilombolas da Jamaica ou da Bahia
rebeldes e poetas de todas as periferias
Loucos, criminosos, estudantes
Nos querem dentro de hospícios, de cadeias, de escolas
Longe das ruas
Querem as grades, os muros, as cercas, as catracas
Uma cidade em que circulam carros, mas onde as pessoas
São confinadas
Jornalistas, doutores, políticos não podem entender
Que democracia é muito mais que apertar um botão de vez em quando
Que estamos dispostos a fazer a nossa história mesmo nas piores condições
Que não temos ilusões, nem vivemos fantasias
Somos aqueles que se movem
E por isso sentimos o peso das correntes que nos prendem
Eles podem mas não querem entender
Que já sabemos que o Estado e o capital são gêmeos siameses
Vivem brigando, mas partilham o mesmo sangue e o mesmo coração
Nasceram juntos e juntos vão morrer pelas mãos dos explorados
Que já sabemos que o estado de exceção em que vivemos
É na verdade regra geral
Que essa paz que oferecem não é nada além de medo
Que passado este medo não haverá quem defenda suas mansões
E não vai faltar quem abra as portas pelo lado de dentro
Que em tempo de desordem sangrenta e confusão organizada
nada nos parece natural
Nada nos parece impossível de mudar
Que agora as mentiras da TV são motivos de piada
Que o rei está nu e sua foto tá nas redes sociais
Que foi nos organizando que nós desorganizamos
E que é desorganizando
que vamos nos organizar
Nada do que venha a acontecer vai tirar de nós o sentimento
de ter tomado o céu de assalto
de ter presenciado quando a vida surgiu de uma nuvem de gás lacrimogêneo
Arrancamos a política das malhas do mundo profano
Nossas palavras dedicamos a
Ademir, André, Carlos Eduardo
Cleonice, Douglas, Eraldo
Fabrício, Igor, Jonatha
José Everton, Lucas, Luiz
Marcos, Renato, Roberto, Valdinete
E a todas as vítimas anônimas da violência do Estado
em sua defesa feroz do capital
Na rua nenhum monumento é inocente
Nela os que tombaram ressurgem pra lutar ao nosso lado
Os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer
Combatemos para que não morram a morte do esquecimento
Combatemos para impedir o inimigo de vencer