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11 de Setembro: duas datas, uma única história.

O golpe militar no Chile, que inaugurou uma das mais sangrentas ditaduras que a América Latina já conheceu, completa hoje 40 anos. Atualmente, é sempre preciso fazer um esforço para lembrar o significado da data, que é mais facilmente associada ao atentado ocorrido em Nova York, em 11 de setembro de 2001. Mas os aviões comerciais que derrubaram as Torres Gêmeas não deixam ter algo em comum com os aviões do exército chileno que bombardearam a sede da presidência, o Palacio de la Moneda, em 1973.

11 de setembro de 1973

11 de setembro de 1973

Como se sabe, a derrubada do governo de Salvador Allende foi inteiramente assistida pelo governo dos Estados Unidos. Vale lembrar que para além do apoio militar e estratégico ao golpe, Washington havia primeiramente submetido o país latino-americano ao boicote econômico, com o fim de desestabilizar o governo socialista de Allende. O martírio do povo chileno havia assim começado anos antes do golpe, mas se tornaria certamente mais difícil após a ascensão dos militares ao poder. O Chile ditatorial foi também o laboratório onde os economistas da escola de Chicago puseram em prática as teses do neoliberalismo, uma nova forma de gestão da economia especialmente prolífica na produção de crises e no aumento da desigualdade social. A eclosão da crise do petróleo, no mesmo ano, permitiu que o modelo keynesiano do Estado de bem estar social fosse posto em questão, e que o neoliberalismo se tornasse o novo dogma econômico do mundo capitalista. Isso foi acompanhado de um novo avanço norte-americano sobre o Oriente Médio, principal região fornecedora de petróleo. Para garantir o domínio da região, os Estados Unidos se valeram de todas as armas que lhe pareceram boas – estabeleceram alianças com ditadores, fomentaram golpes, incentivaram o imperialismo de Israel, seu eterno aliado, e também armaram exércitos rebeldes que viessem a combater a influência russa sobre a região. Foi esse último caso que deu origem aos guerreiros de Osama Bin Laden, os mesmos que mais tarde realizariam os atentados em Nova York.

Mas os ataques da Al Qaeda não são apenas uma consequência invertida do imperialismo Estadunidense. Eles inauguram, na verdade, uma nova fase desse imperialismo. Sob o pretexto de enfrentar um inimigo sem pátria e sem rosto, o “terrorismo”, os Estados Unidos têm conseguido legitimar as mais ilegítimas das ações imperialistas. De um lado, avança, de forma cada vez mais inescrupulosa, nas práticas de espionagem intra e extraterritoriais. De outro, inventa novas ações militares que submergem o mundo árabe em intermináveis guerras. De Bush a Obama, nenhuma ruptura. Depois de intervenções desastrosas no Afeganistão e no Iraque, os exércitos americanos preparam-se para levar a Síria um novo banho de sangue em nome da paz.

Uma história em comum une, portanto, o 11 de setembro de 1973 ao 11 de setembro de 2001. Ambos os eventos são episódios trágicos da história do imperialismo Estadunidense. História que ainda se desenrola sob nossos olhos.

Violento é o trabalho: sobre o amor dos pobres à preguiça

“A fome e a miséria são só devidas à preguiça do povo, que ali devia viver na abundancia.

Qual o motivo porque uma mulher, que não tem o que comer no dia seguinte; que mora em um rancho de palha, que não possui mais que uma rede velha e rota, que verte a saúde por todos os poros – rejeita 30$000 por mês para amamentar uma criança, recebendo além do salario um bom tratamento, ao passo que não tem pejo de estender a mão para implorar a caridade publica?

Qual o motivo porque uma rapariga que vive na prostituição rejeita 20$000 mensais para servir de criada grave, e prefere ao ganho certo a nudez e a fome, uma vez que tenha liberdade para viver na devassidão?

E homens robustos-que passam a vida em continua bebedeira, deitados debaixo de miseras palhoças, acordando somente para comerem um pouco de mandioca, porque recusam 30$000 por mês para servirem como criados ou camaradas?

Não será tudo isto negação completa ao trabalho, amor excessivo á preguiça?”

O excerto acima foi tirado de um livro escrito por um comerciante português que viveu no Brasil há cerca de 150 anos. A primeira coisa que percebemos nele é que sempre antes na história deste país o discurso sobre a preguiça dos pobres existiu. Atualizados os valores, as mesmas frases poderiam ser encontradas facilmente na internet hoje.

A segunda coisa é que a pergunta retórica no final do excerto pode ser respondida de maneira diferente daquela esperada pelo autor usando apenas dados fornecidos por ele mesmo. No texto ele informa alguns preços do mercado local. Uma galinha custava 2$500, uma abóbora podia custar 1$000, um bom peixe, 3$000. Ou seja, amamentar filho de rico (podendo comprometer a amamentação do próprio filho) ou trabalhar como criado rendia um salário que dava pra comprar 12 galinhas por mês, ou 30 abóboras, ou 10 peixes. Ser uma “criada grave” (a opção dada à prostituta), permitia comprar 8 galinhas, ou 20 abóboras, ou 6 peixes por mês.

Ora, o próprio autor afirma no trecho citado que é possível para essas pessoas “comer um pouco de mandioca” (provavelmente plantada no próprio terreno) e “passar a vida em continua bebedeira” (graças a trabalhos esporádicos ou à comercialização de uma pequena produção própria) sem ter que se sujeitar a isso.

Então por que diabos alguém em sã consciência se sujeitaria à exploração de sua força de trabalho nessas condições? Por um salário que compra 10 peixes ao mês é que não é. Mas também aí o autor dá a resposta, revelando a mágica que transformou pobres relativamente autônomos em pobres sujeitos a vender sua mão-de-obra:

“Lance o governo um olhar de compaixão para aquele povo, e procure dar-lhe um remédio eficaz à preguiça, ao contrario terá de vê-lo sempre miserável no meio da abundância, a província inabitável. É-lhe necessário um reativo violento!”

Um reativo violento! Forçar os pobres ao trabalho, impedindo a posse de terras para cultivo próprio e punindo violentamente a suposta “vadiagem”: eis a receita mágica aplicada no Brasil e no mundo. Note que nem estamos falando da escravidão, sistema fundado na violência mais brutal e que na primeira metade do século XIX explorava quase metade da população brasileira. Foi o “reativo violento” que tornou o pobre, além de pobre, um sujeito explorado e dependente – e no caso dos escravos, tornou o alforriado um “vadio” para que continuasse sendo violentamente forçado ao trabalho.

O Corpo de Trabalhadores do Pará, criado em 1838, foi um exemplo de “reativo violento” usado no Brasil. Já no texto da lei a inciativa se justificava como solução para os “vadios” – quase sempre indígenas, que viviam do que produziam ou obtinham na floresta. Com essa legislação, em vigor até pelo menos a década de 1870, o Estado podia sequestrar pessoas para o trabalho forçado e conceder sua exploração a particulares. A Cabanagem (1835-1838) havia sido, em boa parte, uma reação a tentativas de efetivar este tipo de exploração. O Corpo de Trabalhadores nunca foi chamado de violento da forma como os cabanos que reagiam a isso foram.

O Corpo de Trabalhadores do Pará, criado em 1838, foi um exemplo de “reativo violento” usado no Brasil. Já no texto da lei a inciativa se justificava como solução para os “vadios” – quase sempre indígenas, que viviam do que produziam ou obtinham na floresta. Com essa legislação, em vigor até pelo menos a década de 1870, o Estado podia sequestrar pessoas para o trabalho forçado e conceder sua exploração a particulares. A Cabanagem (1835-1838) havia sido, em boa parte, uma reação a tentativas de efetivar este tipo de exploração. O Corpo de Trabalhadores nunca foi chamado de violento da forma como os cabanos que reagiam a isso foram.

Pode esquecer aquela edificante estória do contrato entre indivíduos autônomos que trocam livremente dinheiro por força de trabalho. Sem o “reativo violento” dado pelo “governo”, nada de exploração! E isso nosso amigo do século XIX já sabia muito bem. Ele só não podia confessar que o que lhe interessava era a exploração do outro, e não a melhoria de sua situação (ou alguém acha que a situação de uma mulher melhora com 6 peixes por mês em troca de um filho potencialmente subnutrido?). É por isso que o autor tinha que apelar para o moralismo, falando da preguiça, da prostituição e da bebedeira. O moralismo é o argumento preferencial de quem não pode ir fundo na análise da sociedade porque tem interesses inconfessáveis na exploração e opressão dos outros.

Quando alguém grita “vagabundo”, “puta” ou “maconheiro” é muito provável que, mais do que ignorância, estejamos diante da defesa de interesses que não podem dizer seu nome.

Quando clamam por um “reativo violento” contra o “vagabundo”, a “puta” ou o “maconheiro” é muito provável que estejamos diante de uma máscara que encobre a verdadeira face da exploração.

Violento é o capital.

Violento é o trabalho.

Baderna Midiática

Fonte do Excerto: Joaquim Ferreira Moutinho, Notícia sobre a província de Mato Grosso (1869)